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“Aprendi com a doença da minha filha”

Como o neurocientista Roberto Lent fez da má-formação cerebral de Isabel um salto de conhecimento

Por Ligia Moraes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 fev 2025, 14h40 - Publicado em 8 fev 2025, 08h00

Minha relação com a neurociência não começou no laboratório. Quando minha filha Isabel nasceu, nos anos 1980, parecia um bebê como qualquer outro. Mas, conforme foi crescendo, notamos que algo não evoluía como esperado. Foi um choque descobrir que ela tinha agenesia do corpo caloso, uma rara condição em que os dois hemisférios do cérebro não se comunicam da forma convencional. O corpo caloso é um feixe com milhões de fibras nervosas que conectam essas duas partes do cérebro, permitindo a troca de informações. A ausência dessa estrutura significava que Isabel teria desafios cognitivos e motores ao longo da vida. Naquele momento, eu era um jovem cientista imerso na pesquisa acadêmica, e de repente a ciência se tornou uma questão íntima, com a qual conviveria.

A princípio, me senti perdido. Como pai, queria entender como essa condição afetaria minha filha. Como cientista, me vi diante de uma encruzilhada: seguir estudando os temas que já me ocupavam ou mergulhar na questão pessoal. No MIT, onde eu fazia meu pós-doutorado, compartilhei a angústia com Gerald Schneider, um dos maiores especialistas em neurociência. Ele me disse algo que me marcou profundamente: “Você tem que trabalhar com isso”. E fui em frente, ao lado da minha filha. Passei a estudar modelos experimentais de desenvolvimento cerebral e publiquei diversos artigos sobre o tema nos Estados Unidos. Entendi que a neurociência não podia ficar restrita às questões puramente teóricas. Ela tinha implicações reais, e eu estava vivendo uma delas.

Minha busca por respostas me levou a uma descoberta fascinante. Em um estudo que publiquei com a neurocientista Fernanda Tovar-Moll, analisamos como o cérebro de pessoas com agenesia do corpo caloso, como o da Isabel, desenvolve conexões alternativas. Os neurônios, sem seu caminho tradicional, criam novas rotas para garantir a comunicação entre os hemisférios cerebrais. Ela foi uma das pacientes analisadas nesse estudo, já adulta. Foi emocionante perceber que, apesar da ausência de uma estrutura tão crucial, o cérebro encontra maneiras de se adaptar. Essa plasticidade, a capacidade de reorganização, é uma das forças mais impressionantes da biologia. Isabel não consegue falar, mas é muito expressiva em gestos e bem alegre no dia a dia.

A experiência com ela foi transformadora, mas não posso esquecer da decisiva influência de meu pai, o avô dela. Sou filho de Herman Lent, um parasitologista cassado pela ditadura militar. Cresci frequentando os laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz (leia reportagem na pág. 42) e logo me encantei pela pesquisa. Nos anos 1960, escolhi a medicina como caminho para a ciência, inicialmente atraído pela genética. No primeiro ano da faculdade, no entanto, conheci Eduardo Oswaldo Cruz e me apaixonei pela neurociência. Meu primeiro trabalho foi sobre o sistema visual do gambá, mas foi com a experiência de Isabel que entendi o impacto real da pesquisa no mundo.

Nos anos 1970, preso pela ditadura por minha militância política, fui levado para a Ilha das Flores, um centro de detenção usado pelo regime. Passei dias confinado em uma cela improvisada, um pequeno banheiro sem janelas, onde a única conexão com o mundo exterior era o som abafado de um rádio tocando País Tropical, de Jorge Ben Jor. O paradoxo da música alegre em contraste com a dureza daquele momento marcou profundamente minha memória. Mais tarde, ao me aprofundar na neurociência, compreendi que eventos carregados de emoção são registrados com mais intensidade pelo cérebro, um fenômeno que explica por que certos momentos da vida ficam gravados com tanta nitidez. Devo a força deles aos amigos, à família, e a Isabel, com quem aprendi sobre resiliência e adaptação.

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EXISTO, LOGO PENSO – HISTÓRIAS DE UM CÉREBRO INQUIETO, de Roberto Lent. Editora: ICH. Págs, 164. Preço: R$ 69,00. (Editora ICH/Divulgação)

Roberto Lent em depoimento a Ligia Moraes

Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930

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