Ao longo da segunda metade do século XX, findadas as grandes guerras e já estabelecida a nova ordem mundial, foram incontáveis os avanços científicos, em especial na área da saúde. O resultado, mais que bem-vindo, foi viver mais: em todo o mundo, a expectativa de vida aumentou 20 anos; nos países ricos, a progressão foi ainda maior, somando surpreendentes três décadas. Era óbvio esperar que a evolução continuasse. Houve até quem dissesse, nos últimos tempos, que já havia nascido o ser humano que viverá 150 anos. O que os números dizem, no entanto, desaponta. Em passagem pelo Brasil, a médica Evelyne Bischof comentou sobre o tema.
Bischof é vice presidente da Sociedade de Medicina da Longevidade Saudável, da aula nas Universidades de Xangai, Tel Aviv e Zürich e também desenvolve pesquisa nas áreas de oncologia, medicina de precisão e inteligência artificial. Ela veio ao país para encerrar o Future of Medicine de 2024, um ciclo de palestras que discute temas da atualidade em ciências médicas, e concedeu entrevista a VEJA. A seguir, os principais trechos da conversa.
Um artigo recente apontou ser pouco provável que qualquer país no mundo atinja uma expectativa de vida de 100 anos até o final da década. A ciência chegou a um limite? Vindo da área de longevidade, eu diria que definitivamente precisamos de mais pesquisas para ultrapassar limites. A expectativa de vida tem aumentado, e sabemos disso, e as pessoas provavelmente continuarão a viver mais. Há um limite? Sim, com certeza. Queremos ultrapassar esse limite? Não sei, algumas pessoas querem. O que definitivamente queremos fazer é garantir que o tempo de vida saudável acompanhe a maior expectativa de vida. Não é possível aumentar a expectativa de maneira adequada sem que o tempo de vida saudável seja estendido também. E o artigo aponta para isso. Melhorar o período de vida saudável também levará a um aumento da expectativa de vida.
Então devemos focar na saúde ao invés de focar na longevidade? Não é bem assim. Há muitas pessoas trabalhando especificamente na extensão da expectativa de vida e outras focando na extensão do tempo de vida saudável e nós colaboramos uns com os outros. Devemos olhar para ambos.
Quais são os principais fatores que, hoje, impedem estender o período de vida saudável? Em primeiro lugar, está a falta de pesquisa clínica. É preciso financiamento, porque esse tipo de pesquisa não é barata e exige muito acompanhamento. O segundo ponto é a falta de educação. Muitos pacientes não estão familiarizados com a ideia de tempo de vida saudável. Os tomadores de decisão em governança e saúde pública também. O terceiro são os médicos. Estão todos tão ocupados com suas rotinas e especialidades que não tem tempo de aprender coisas novas e, hoje, os currículos ainda não são padronizados para que entendam direito a ciência da longevidade. Não adianta ter as ferramentas se os médicos não as aplicarem.
Aqui no Brasil temos um sistema público de saúde muito grande e disseminado, mas muitos dos diagnósticos da medicina de longevidade saudável são muito caros. Você acha que poderiam ser adaptados para serem incorporados em um sistema de saúde assim? Sim, definitivamente. Nós publicamos recentemente um artigo sobre como construir departamentos de longevidade em um hospital público. Como vimos com genética e genômica, o custo foi de milhares de dólares para agora centenas de dólares, e certamente vai cair ainda mais. A redução de custos traz mais acessibilidade. E isso se aplica especialmente em países com sistemas públicos como Brasil e China porque eles sabem otimizar processos e saem na frente na corrida por redução de custos. A questão é: como realmente implementar isso na rotina diária? É preciso de médicos treinados para isso.
Muitas pessoas têm apostado nos suplementos como estratégia de longevidade. Eles são úteis? Alguns suplementos são muito específicos e fazem muito sentido, mas é preciso fazer exames para saber quais utilizar. Menos é mais. Tomar muitos suplementos nem sempre vai fazer bem e algumas pessoas simplesmente abusam da quantidade. É preciso acompanhamento de um médico que entenda desses suplementos e saiba fazer os exames corretos.
Nos últimos anos, o empresário Bryan Johnson ganhou muita atenção por seu esforço, não apenas para conquistar a longevidade, mas também para tentar rejuvenescer. Como a medicina da longevidade vê esse tipo de experimento pessoal? Eu gosto do Bryan e acho que ele ser tão vocal teve um resultado positivo. O problema é que os pacientes às vezes gostam de olhar apenas para os atalhos. Olham para a lista de suplementos do Bryan, por exemplo, ou para as intervenções que ele faz, mas sem legar em consideração fatores como nutrição e rotina de sono. Toda informação pode ser mal interpretada, mas acho que todo esforço de promover a medicina da longevidade saudável é benéfica para o campo. A propósito, ele é apenas uma das muitas pessoas que estão no campo do biohacking, que é um grupo de pessoas que traz um feedback crítico do que eles estão testando. Isso é bem-vindo.
E qual o papel da Inteligência artificial nisso? Sem IA nós não teríamos chegado até aqui. Hoje nós temos muitos marcadores para avaliar a saúde do paciente – na verdade, na medicina da longevidade, a perna diagnóstica é muito maior que as intervenções. As IAs ajudam a interpretar esses resultados. E quanto mais informações eu der para a ferramenta, melhor. Ela vai me dizer melhor coisas como a idade biológica do paciente, como acompanhar e que tipo de intervenções fazer. Ela também nos ajuda a incorporar o exposoma, que são os fatores a que o paciente é exposto e que tem influência sobre a saúde. É uma ótima ferramenta para os médicos, mas ainda é necessário ter clínicos treinados para olhar criticamente e dar uma boa assistência ao paciente.
Na sua palestra no Future of Medicine, a senhora comentou que cérebro é um órgão que ainda está negligenciado nessa campo. Pode comentar um pouco melhor sobre isso? Sim, falamos cada vez mais sobre isso, porque na medicina tradicional é como se o cérebro fosse trabalho só dos neurologistas, neurocirurgiões, psiquiatras e psicólogos. Na verdade, uma das primeiras tentativas de medições de idade biológica foi feita no cérebro. A idade biológica no cérebro foi desenvolvida com base em ressonância magnética há um tempo, quando a IA estava apenas entrando no campo da radiologia. E estamos aprendendo cada vez mais. O que ainda está um pouco subdesenvolvido é o envelhecimento psicológico. Eu acho que precisamos de mais trabalho nessa área.
Um estudo publicado recentemente, na JAMA Pediatrics, aponta que a experiência de racismo na adolescência pode levar ao envelhecimento precoce. Outro trabalho também mostrou que mulheres que vivem racismo envelhecem mais rapidamente. A senhora acha que a pesquisa sobre longevidade saudável está dando atenção a esses fatores? Sim, absolutamente. Uma coisa interessante da pandemia é que ela deixou evidente o quanto fatores como sexo biológico e gênero são importantes na saúde. Quando os algoritmos de longevidade saudável foram desenvolvidos, esses fatores foram todos incorporados. O racismo é apenas um dos exemplos dos impactos na saúde mental, um componente do envelhecimento psicológico, e ele tem se mostrado importante, assim como a síndrome do transtorno pós traumático.
Eu gostaria de ouvir sua perspectiva sobre o Brasil. Quão grande a senhora acredita ser o potencial do país para essa área de pesquisa? Eu acho que há um potencial imenso. Não só em termos do tamanho da população, que é muito útil, mas também da mistura étnica, um fator perfeito para implementar estudos. Em segundo lugar, há uma grande quantidade de jovens. Ter muitos jovens é algo muito frutífero para o estudo da longevidade. Além disso, existem muitos médicos e faculdades de medicina, o que faz com que o país possa ser um líder em potencial nessa área.