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As revelações inéditas da ambiciosa expedição ao Ártico

Cientistas descobriram que a espessura da calota polar está ainda menor do que se pensava e isso afeta até as estações do ano

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h04 - Publicado em 3 jul 2020, 06h00

Entre todas as quarentenas decretadas para conter a Covid-19, nenhuma foi tão rigorosa quanto a dos 124 tripulantes a bordo do quebra-­gelo Polarstern, ou Estrela Polar, navio de pesquisas do instituto alemão Alfred Wegener. O grupo embarcou em fevereiro na viagem em direção ao tenebroso inverno glacial do Polo Norte, onde as temperaturas baixam a 50 graus negativos e a escuridão dura 180 dias por ano. A ideia era outra equipe render esse grupo em abril, mas, com voos cancelados e portos fechados, a turma seguiu a bordo — só veio a desembarcar em 17 de junho, na remota ilha norueguesa de Svalbard. Apesar da dureza da jornada, ninguém pensou em desistir da missão histórica que envolve o projeto Mosaic, um painel de 600 cientistas de vinte nacionalidades empenhados na mais ambiciosa expedição já feita ao encontro dos segredos do Círculo Polar Ártico. Iniciada em setembro de 2019 e prevista para acabar em outubro, após percorrer 2 500 quilômetros, a viagem do navio Polarstern vem revelando de forma inédita os impactos do aquecimento global sobre o gelo, a atmosfera e a vida marinha desse ponto do planeta tão imenso quanto misterioso.

Ao contrário da Antártica, um continente de fato, o Ártico é um oceano coberto por gelo marinho, característica que torna complexa sua exploração. Enquanto o continente gelado ao Sul aloja 4 000 pesquisadores em 75 bases permanentes, o instável gelo do Norte não permite qualquer construção, o que faz do Oceano Ártico, abaixo da calota, um dos pontos mais remotos do planeta. Por ter características tão complexas, quase tudo que se sabe de lá é informação obtida por satélites. O mapeamento espacial acompanhou, por exemplo, o encolhimento de 30% da calota polar desde 1979, comprovação inequívoca dos malefícios do efeito estufa. Agora, acionando um radar de 170 quilos transportado até o local, a equipe do Polarstern detectou que a espessura do gelo ártico está ainda mais fina do que se estimava. Só a observação in loco permite saber isso, já que a quantidade de camadas de neve, a salinidade e a temperatura interferem na penetração dos raios laser responsáveis pela medição por satélite.

Habitat ameaçado - Ártico enfrenta degelo sem precedentes
HABITAT AMEAÇADO – Urso polar: desequilíbrio na cadeia alimentar do Ártico. (Lukas Piotrowski/Alfred Wegener Institut/AFP)

Os cientistas também constataram que não só a espessura, mas a própria estrutura da calota vem sofrendo alterações: o gelo está se movimentando com maior vigor e apresenta número crescente de rachaduras. Mais preocupante ainda é a extensão cada vez mais reduzida das múltiplas camadas de neve que se acumulam desde que o mundo é mundo nos trechos próximos ao polo. A velocidade das mudanças aponta para o completo colapso da calota em futuro não muito distante. “Sem a capa de neve para refletir o sol, o oceano passa a absorver calor, acelerando o aquecimento global”, diz Julienne Stroeve, da Universidade de Manitoba, responsável pela descoberta. “É provável que isso aconteça antes de 2050”, afirma.

O impacto do fenômeno é tão potente que interfere até no início das estações — o verão ártico agora começa antes e dura mais. Como o frágil ecossistema da região é todo interligado, as alterações têm efeitos em cadeia. O ocea­nógrafo Jeff Bowman, do Scripps Institution, de San Diego, obser­vou que o encolhimento da calota faz com que a luz solar alcance a superfície da água com mais intensidade, o que acelera a reprodução de fitoplânctons, microalgas que formam a base da cadeia alimentar local. Em vez de alcan­çarem seu auge em julho, as algas estão se espalhando em grande escala já em abril, o que pode desestabilizar a alimentação dos ursos polares. “Fitoplânctons também são responsáveis por absorver boa parte do carbono da atmosfera. Seu desequilíbrio vai alterar esse mecanismo”, alerta Bowman.

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Foi só no século XIX que desbravadores, sobretudo britânicos, começaram a buscar uma rota ao Norte que conectasse o Atlântico ao Pacífico e facilitasse o comércio entre o Ocidente e a Ásia. Em 1845, uma expedição liderada por John Franklin tentou mapear a traiçoeira Passagem do Noroeste, via marítima que faz a ligação do Estreito de Davis, do lado atlântico, com o de Bering, no Pacífico. Sem tecnologia para vencer as intempéries, o navio afundou próximo a Nunavut, no Canadá. A viagem mais bem-sucedida foi a do norueguês Fridtjof Nansen, o primeiro a se aproximar do Polo Norte, alinhando descobertas que têm impacto até hoje. O Polarstern, com toda a sua carga de equipamentos ultramodernos, seguiu a mesma e poderosa corrente oceânica, a Transpolar, localizada por Nansen e responsável por impulsionar sua embarcação, em velocidade de 7 quilômetros por hora, até onde ninguém havia ido. Nessa trajetória, em 24 de fevereiro o navio de pesquisa alemão ficou a menos de 200 quilômetros — precisamente 156 — do Polo Norte, em pleno inverno. Um feito inédito, entre muitos que o projeto Mosaic espera conquistar.

Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694

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