Assombrações totalitárias: a ligação dos nazistas com crenças ocultistas e pseudocientíficas
Baseado em farta pesquisa, livro examina o impacto dessas ideias no desenrolar da Segunda Guerra - uma história que não se encerrou por aí

Em 1943, Heinrich Himmler, um dos principais líderes do nazismo, recrutou um bando de astrólogos e parapsicólogos, deu-lhes bebida alcoólica, charuto e comida fina e pediu para que, por meio de suas artes mágicas, descobrissem o paradeiro de Benito Mussolini, o ditador italiano deposto e capturado havia alguns meses. O objetivo: libertar e pôr de volta no poder um parceiro essencial da Alemanha em meio ao avanço dos Aliados no continente europeu.
O caso, no entanto, não foi uma extravagância isolada. Nasceu do pano de fundo de crenças sobrenaturais que dominaram a mente de boa parte do povo germânico e de chefões nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
E foi nesse mesmo cenário que prosperaram conceitos pseudocientíficos como curas naturais, ideias ocultistas que exaltavam os arianos descendentes dos deuses e demonizavam judeus, bem como lendas e ritos para erigir uma espécie de religião pagã. Se hoje ecos dessas crenças ainda aparecem na cultura pop — como nos filmes de Indiana Jones ou nos quadrinhos de Hellboy —, nas décadas de 1930 e 1940 elas influenciaram a busca por território para a expansão do Terceiro Reich, a perseguição desenfreada às “raças inferiores” e até operações militares.

A construção desse “imaginário sobrenatural” no seio da cultura alemã e do partido nazista e seus reflexos em um conflito catastrófico motivaram o historiador americano Eric Kurlander a dedicar anos de estudos ao tema. O resultado dessa pesquisa está documentado em Os Monstros de Hitler, recém-publicado no Brasil pela Editora Zahar.
A obra mostra como uma corrente de crenças sem lastro na realidade, superstições, visões folclóricas e teorias da conspiração, já cultivadas em solo germânico, ganhou terreno propício para se disseminar após a derrota e a crise moral e econômica que vieram na esteira da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). E examina de que modo elas pesaram na tomada de decisões e nos planos nefastos dos nazistas.
“Houve três elementos nesse imaginário: a pseudociência, o ocultismo e a religião alternativa ou pagã”, disse a VEJA Kurlander. “No início das pesquisas, imaginava que iria encontrar apenas gente como Himmler e Hitler envolvida nisso, mas, na verdade, havia um grande interesse dos nazistas por essas ideias, que foram utilizadas ocasionalmente para fins políticos”, completa o autor.
O professor americano desfia uma série de doutrinas e mitos que se amalgamaram no afã do Reich de aniquilar seus inimigos e prosperar no comando de um novo mundo.
Eles vão do uso de técnicas como a radiestesia por pêndulos, que supostamente guiaria os melhores caminhos para sarar o corpo e a terra, até a noção de que os alemães seriam oriundos de uma raça superior, abençoada pelas deidades nórdicas e conectada a um povo ancestral do Tibete — motivo pelo qual Himmler autorizou uma expedição à Ásia.
Tropas nazistas evocaram lendas de vampiros para matar eslavos e se assenhoraram da figura do lobisomem para punir quem estivesse à sua frente. Sonhando com o martelo de Thor, o deus escandinavo do trovão, buscaram construir armas milagrosas, capazes de se apoderar dos raios elétricos dos céus, a fim de reverter a perda iminente da guerra e superar a “física nuclear judaica”.
E ainda há indícios de que menosprezaram a ameaça do inverno na invasão à Rússia por se acharem naturalmente imunes ao frio. De repente, magia e tecnologia se encontraram em prol de propósitos obscuros.

Será que, sem tanta adesão a essas crenças, o desfecho do conflito seria outro? “Não creio, mas talvez tivessem estendido o horizonte da guerra por mais três, seis meses”, responde Kurlander. “No entanto, tudo isso é emblemático de como esse tipo de pensamento impactou as políticas nazistas.”
Aliás, a crença no sobrenatural não se esgotou com o fim da Segunda Guerra. Como mostra outro livro lançado no país, Uma Terra Assombrada por Demônios, da historiadora americana Monica Black, publicado pela Editora DarkSide, o apego e o culto aos misticismos foram alvoroçados após as circunstâncias de terra arrasada deixadas pelos conflitos na Alemanha.
Black investiga, em particular, o fenômeno do místico Bruno Gröning, que atraiu milhares de alemães por seus pretensos poderes de cura e depois teve que inclusive prestar contas à justiça. É um emblema de como, sobretudo em momentos de colapso psíquico e social, o ser humano se aferra ainda mais a um “além”.
Mas que lições esses flertes ocultistas e pseudocientíficos de ao menos oitenta anos atrás deixam a nossos tempos, acossados por rompantes totalitários?
Depois de publicar o livro, Kurlander fez um estudo, junto a psicólogos, para entender como esses dois polos históricos se conectam na mentalidade dos americanos. “Descobrimos que aqueles que estão no topo da escala de crenças sobrenaturais estão também no topo da escala do autoritarismo”, diz o historiador.
Ou seja, o terraplanismo, o movimento antivacina e outras sandices são exemplos de como o mundo real segue perigosamente influenciado por crenças no outro mundo.
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940