Muito antes de o astronauta americano Neil Armstrong (1930-2012) pisar na Lua pela primeira vez, em 20 de julho de 1969, dando “um pequeno passo para um homem e um grande salto para a humanidade”, observadores antigos já imaginavam como seriam os relevos de nosso satélite natural. Um dos atlas mais antigos do corpo celeste, o Selenographia, data do século XVII e foi criado pelo astrônomo polonês Johannes Hevelius, que documentou cada cratera, encosta e vale observado por meio de um telescópio caseiro. Depois, várias outras cartas surgiram ao redor do mundo.
A missão Apollo 11, comandada por Armstrong, permitiu à Nasa a criação de um catálogo lunar abrangente. Durante décadas, as agências espaciais dependeram quase sempre desse documento. No entanto, as conquistas tecnológicas e o renovado interesse em estabelecer uma base avançada no espaço exigiram a criação de uma versão mais atualizada do compêndio. Ela acaba de ser lançado. O novo atlas lunar da Academia Chinesa de Ciências é um celebrado movimento da corrida espacial, atalho para impulsionar as pesquisas. É também uma piscadela da China ao passado.
No fim do século XX, a China criou o projeto de exploração lunar Chang’e — nome da deusa chinesa da Lua. Recentes missões não tripuladas de diversos países coletaram enorme quantidade de dados e amostras de rochas lá de cima. “No entanto, desde a era Apollo ninguém tinha feito um mapeamento geológico tão completo”, disse a VEJA Liu Jianzhong, um dos responsáveis pela iniciativa. Em abril de 2020, os Estados Unidos chegaram a reeditar com esmero o conjunto de desenhos compilados com o tempo, mas sem total representação de descobertas modernas.
Os cientistas orientais deflagraram a recente aventura em 2012. O resultado, disponível de maneira digital, é claro, com o dobro de resolução da versão anterior, foi também encadernado em um volumão pesado que lembra os antigos atlas escolares consultados nas aulas de geografia. Os detalhes são fascinantes, tal como a marcação precisa das crateras Tycho e Copernicus ou as terras altas Fra Mauro e Descartes. A riqueza de minúcias impressiona: são mais de 12 000 crateras e pelo menos dezessete tipos de pedra, cada uma delas com potencial exploratório diferente.
A atualização foi bem recebida pelos especialistas. “É como ver uma imagem na televisão que antes estava em Full HD e agora está em 4K”, diz o físico Bruno Leonardo do Nascimento-Dias, pesquisador do Instituto Europeu de Astrobiologia. “Conhecer bem a Lua implica conhecer melhor a sua origem”, ecoa o astrofísico Enos Picazzio, da Universidade de São Paulo. Trata-se, enfim, de um mapa que por ora pode soar um tanto etéreo, coisa de quem anda no mundo da Lua, mas que no futuro abrirá portas de conhecimento e, por que não, também de algum tipo de extração.
O efeito mais imediato, contudo, tem caráter geopolítico. O claro objetivo chinês era vencer a corrida contra os americanos. A última missão tripulada da Nasa à Lua aconteceu em 1972. Depois, não fazia mais sentido torrar bilhões de dólares para deixar os soviéticos no espelho retrovisor. As pesquisas remotas, porém, continuaram e, com a entrada de novos atores no espaço, ficou evidente que o satélite é rico em terras e minerais raros com alto potencial para exploração. O solo flicts pode guardar surpresas valiosas e, mais decisivo, pode haver água. “A baixa gravidade lunar também facilitaria lançamentos espaciais”, afirma Picazzio.
A corrida — que agora envolve também a saudável força econômica de empresas privadas — está apenas começando. Pode-se compará-la a uma guerra, fria como a dos anos 1960, mas em um planeta de extraordinários instrumentos de informação não custa nada imaginar um sonho. “Cientificamente, pode não haver uma disputa, mas uma colaboração para o progresso”, diz Nascimento-Dias. Um ponto é inquestionável: quem chegar primeiro tem preferência. É passo da humanidade que depende de um mapa preciso.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891