Churrasco de laboratório: as proteínas que podem revolucionar a indústria
Fabricadas em centros de pesquisa a partir de células de animais, elas são liberadas para consumo e podem mexer com o mercado
Nos últimos anos, poucos setores da economia inovaram tanto quanto a indústria de alimentos. Diante do desafio de saciar a fome de um número crescente de pessoas e ao mesmo tempo salvar o planeta dos riscos ambientais, as empresas promoveram uma corrida mundial por fontes alternativas de comida. Nasceram desse movimento as carnes vegetais, que hoje em dia ocupam espaço generoso nas gôndolas dos supermercados e estão até nos cardápios de redes de fast food que fizeram fama com seus hambúrgueres suculentos. Agora, contudo, uma nova revolução está em curso. Há alguns dias, o Food and Drug Administration (FDA), órgão regulatório dos Estados Unidos, liberou para consumo humano as carnes sintéticas, também conhecidas como “clean meat” (carne limpa) ou “cultured meat” (carne cultivada), produzidas pela startup californiana Upside Foods.
Trata-se, de fato, de um passo gigantesco para a humanidade: a carne, que deverá chegar aos supermercados entre 2023 e 2024, é feita partir de células de animais, sem que haja a necessidade de abate. “É um produto que nunca representou parte de um animal vivo completo”, afirma Luciano Paulino da Silva, pesquisador na Embrapa de recursos genéticos e biotecnologia. No processo de fabricação, em primeiro lugar, os cientistas extraem um pedaço de músculo de um animal doador. A amostra, então, é dissolvida com a ajuda de enzimas, ação que tem por objetivo “liberar” as células para novos usos. Elas, por sua vez, são colocadas em tanques com nutrientes, nos quais se reproduzem durante algumas semanas. Depois desse período, biorreatores aceleram a sua multiplicação. A seguir, são retiradas do tal tanque, já secas e processadas, mas com a aparência de carne moída. A última etapa é prensar o alimento até atingir o formato, digamos, de um peito de frango ou de um hambúrguer. O mais impressionante: os testes mostraram que a consistência e o sabor são quase idênticos aos do produto natural.
Não é difícil imaginar o impacto que a carne de laboratório poderá provocar, caso a indústria consiga mesmo viabilizar o negócio. A pecuária é responsável por ao menos 13% das emissões de gases causadores do efeito estufa na atmosfera. Estima-se que uma única vaca viva consuma 11 000 galões de água por ano, seus excrementos poluem o solo e a proliferação de antibióticos usados no tratamento dos animais está contribuindo para o surgimento de superbactérias. Com a carne sintética, parte desses problemas será resolvida.
Embora a autorização do FDA seja um alento, alguns obstáculos precisam ser vencidos. O primeiro deles diz respeito ao preço — o custo de produção é elevado e, como não há fabricação em escala, os valores continuarão altos por um bom tempo. Além disso, há uma série de questionamentos, como a origem “artificial” da carne ou a segurança desses produtos, fatores que podem prejudicar a aceitação. Também pairam dúvidas éticas. Se é possível fabricar um bife, quanto tempo levará para a humanidade criar um animal inteiro? Anos? Décadas?
A despeito desses questionamentos, a indústria vem concentrando investimentos no negócio . De acordo com dados do instituto americano The Good Food, 107 empresas de 25 países investem no desenvolvimento das proteínas sintéticas. Juntas, elas arrecadaram nos últimos anos 1,3 bilhão de dólares de investidores. No Brasil, grandes companhias estão atentas à revolução. No ano passado, a BRF associou-se à startup israelense Aleph Farms com o objetivo de ser a primeira do país a produzir carne a partir do cultivo de células de animais. No mesmo embalo, a JBS comprou a empresa espanhola BioTech Foods e criou em Florianópolis um centro tecnológico para a produção de proteínas alternativas. Não há dúvida: a revolução mal começou.
Colaborou Marilia Monitchele
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819