Não é de hoje. Já em 1958, a denúncia ganhara as manchetes dos jornais. O patrimônio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, estava ameaçado por problemas estruturais e falta de verba. Sessenta anos depois, naquele trágico 2 de setembro de 2018, a negligência do poder público na manutenção do prédio resultou em um incêndio de grandes proporções. Em horas, a maior parte do precioso acervo foi engolida pelas chamas. E então, somente depois do drama, o triste destino do antigo palácio imperial serviu para atrair o investimento necessário para reconstruir e resgatar do descaso um dos museus mais relevantes da América Latina e do mundo.
A reinauguração está marcada para o início de 2026. A fachada desponta recuperada e as salas de exposição, novos galpões de pesquisa e sistemas anti-incêndio estão em processo de restauração. O que ainda resta é recompor a valiosa coleção — eram mais de 20 milhões de peças no acervo, 85% das quais acabaram destruídas. O esforço empregado começa, enfim, a dar resultados. A novidade: no início de maio, mais de 1 100 peças foram doadas ao museu pelo colecionador suíço-alemão Burkhard Pohl. Um sinal de que, finalmente, parte da riqueza histórica do país receberá atenção e respeito merecidos.
O novo conjunto contém fósseis raros, como espécies únicas de dinossauros, crânios de pterossauros ainda não estudados e espécimes de uma das cobras mais antigas do mundo. É material que vem da Bacia do Araripe, na divisa dos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, um dos sítios paleontológicos brasileiros mais celebrados. A mediação teve o esforço da mecenas argentina Frances Raynolds. “Fico emocionada com o movimento, símbolo do sucesso de uma parceria público-privada”, diz Frances. “É um grande acontecimento, que incentiva colecionadores, instituições e governos a fazer doações arqueológicas e empréstimos.”
Há muito ainda, é claro, a ser construído. Representantes da instituição estão em contato com comunidades indígenas e quilombolas, e pesquisadores foram a campo buscar fósseis e objetos arqueológicos. Outro fascinante caminho: o esforço de repatriação de objetos espalhados pelo mundo. Destes, o mais conhecido é um manto tupinambá, que desde 1689 está em Copenhague, na Dinamarca. “O incêndio ficou muito feio para o país”, disse a VEJA o diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner. “Agora, estamos reconquistando a confiança internacional.”
Nesse sentido, ainda será preciso muito empenho e inteligência. O Ministério da Educação tem se esmerado para resgatar o museu. Mas as intenções, sozinhas, não serão suficientes. “Para funcionar adequadamente, todo museu precisa de verba e investimento”, afirma Ana Karina Calmon, professora de museologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E é aqui que o calo aperta. Os 267 milhões de reais captados para a reconstrução estão dando resultado, mas será preciso um lote de outros 13 milhões de reais anuais para manutenção.
Hoje, essa manutenção depende da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que sofre por falta de verba. As equipes de limpeza e vigilância estão reduzidas, a brigada de incêndio tem apenas dois profissionais e, por incrível que pareça, não há uma equipe de zeladoria adequada. Contudo, há alguma verba para licitações garantida, de valor não revelado, mas adequada a fazer a roda andar. Não é o caso de dizer que a instituição viva etapa radiante, avessa a erros. Não. Todo cuidado é pouco, e a lembrança da tragédia de 2018 é sombra educativa. Em nome da ciência e da cultura, não há mais terreno para inépcia.
CORREÇÃO: Diferentemente da primeira versão do texto, apenas a fachada do museu está pronta, o restante do prédio ainda está em processo de restauração, além disso, a verba do museu provém do Ministério da Educação, não da Cultura. A informação foi corrigida na plataforma digital.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893