Entre cautela e avanços, transgênicos completam trinta anos
Em 1994, chegou aos supermercados o primeiro fruto dessa tecnologia, que revolucionou a agricultura, apesar de forte resistência
A proposta pode soar presunçosa e até futurista, mas já é uma realidade há pelo menos 15 000 anos, desde quando os primeiros homens desenvolveram a agricultura e passaram a selecionar plantas para alavancar a colheita. Ninguém, claro, intuía que existisse algo chamado DNA, porém, inconscientemente, ao escolher frutos e sementes mais saborosos e resistentes, nossos ancestrais elaboraram uma forma rudimentar de favorecer artificialmente alguns genes — as sequências de informações que guardam a receita de cada ser vivo — em detrimento de outros. Foi só no século XIX que a compreensão do fenômeno viria à luz. Ao observar a cor e a textura de ervilhas, o botânico Gregor Mendel descobriu as regras da hereditariedade, apontando como cruzamentos podiam ser feitos para impor as características desejáveis de determinada espécie vegetal. No desenrolar do século XX, o DNA foi revelado como o grande regente dessa orquestra biológica e, ao aprender a manipulá-lo, a ciência abriu caminho a uma tecnologia capaz de modificar um pedaço do código da vida. Era a transgenia.
Em 1994, chegava aos supermercados americanos o primeiro produto dessa safra revolucionária, o Flavr Savr, um tomate que emprestava uma sequência genética de bactérias para durar mais tempo nas prateleiras e nas despensas. A recepção, contudo, não foi das melhores: além do pecado de brincar de Deus, como se dizia, havia um medo real de consumir um alimento adulterado com uma pitada bacteriana. O alarde não foi suficiente para frear o desenvolvimento da categoria, mas, desde então, o foco dos transgênicos — esses cultivares que carregam um gene de outra espécie, vegetal ou não — passou a ser os agricultores e a produtividade no campo, muito mais que o apelo entre os consumidores.
Com uma inédita resistência a pragas e aos efeitos deletérios de herbicidas, as lavouras nascidas desse método prosperaram e as perdas diminuíram drasticamente. “Hoje, no Brasil, mais de 90% das safras de soja, algodão e milho são transgênicas, porque elas resolvem problemas que, por enquanto, são difíceis de solucionar com técnicas mais tradicionais”, afirma Ana Brasileiro, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. O mercado é dominado por poucas e parrudas empresas privadas, detentoras também dos fertilizantes e pesticidas indicados para o cultivo. “Como o processo regulatório é caro, o lançamento de produtos desenvolvidos dentro de universidades é lento”, diz Kleiton Machado, pesquisador da Universidade Federal de Viçosa.
De fato, criar um transgênico tem um preço estratosférico, resultado de investimento em pesquisa e regulamentação — todo o processo pode chegar a custar mais de 130 milhões de dólares. Por esse motivo, a Embrapa, empresa pública brasileira que estuda transgenia há pelo menos 25 anos, tem apenas dois produtos no mercado: uma soja resistente a herbicida e um feijão imune ao vírus do mosaico-dourado, ambos orgulhosamente lançados há menos de cinco anos — e celebrados.
De fato, o rito para criar e aprovar organismos geneticamente modificados é rigoroso. Isso porque sempre houve um receio de que eles pudessem fazer mal ao ser humano ou ao ecossistema. São necessários, portanto, extensos estudos de segurança até a comercialização. “Reconhecemos que o processo segue exigente, mas, nas últimas duas décadas, entendemos que os riscos eram menores do que se imaginava, e agora as coisas são mais fáceis”, diz Leandro Astarita, presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável por avaliar os transgênicos no país. “Ao longo dos 25 anos de atividade da CTNBio, não houve qualquer caso de problema que uma dessas plantas tenha gerado para a saúde ou o meio ambiente.”
O cuidado, no entanto, é sempre bem-vindo e, por vezes, nem diz respeito à engenharia genética em si. Não há natureza que resista aos estragos provocados por milhões de hectares de monocultura — uma realidade no Brasil, que surfa a onda verde da transgenia. É prudente repensar o modelo, e a própria tecnologia pode ser útil nesse sentido, atuando em prol de um sistema agrícola sustentável e regenerativo. Até porque temos um desafio enorme pela frente, o aquecimento global.
Hoje, pesquisas ao redor do globo tentam manipular o DNA para desenvolver safras capazes de sobreviver às mudanças climáticas, emulando os experimentos com trigo feitos pelo agrônomo americano Norman Borlaug, Prêmio Nobel da Paz em 1970, que renderam uma variante mais resistente e apta a mitigar a fome e a desnutrição pelo planeta. Agora, as intervenções genéticas buscam criar versões que consigam escapar das secas cada vez mais frequentes — e não apenas na cultura do trigo.
Sem o movimento dos transgênicos, não estaríamos hoje às portas da edição genética milimétrica, que não depende mais da importação de genes de outras espécies para alterar uma característica ou corrigir doenças. E esse movimento, em que pesem as discussões e os receios em jogo, é o mesmo que começa a nos brindar com plantas mais nutritivas e menos alergênicas e animais capazes de se adaptar a ambientes diversos. Ferramentas que facilitam o processo de “cortar e colar” genes, como o celebrado Crispr, têm tudo para acelerar e baratear o desenvolvimento de organismos geneticamente modificados. O resultado desse frutífero empreendimento será visto no campo, nas gôndolas… e à mesa.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898