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‘Gravidez não é um estado saudável para o corpo feminino’, diz cientista

A americana Cat Bohannon, autora de 'Eva', reflete sobre a evolução humana, machismo e responde se a ciência pode ser feminista

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 jul 2024, 15h29

Há dez anos, a pesquisadora e escritora americana Cat Bohannon assumiu uma missão de vida: recolocar as mulheres no centro do nosso processo evolutivo. Dessa determinação nasceu Eva: como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana (Companhia das Letras), livro responsável por fazer uma justiça histórica que muitos nem sabiam ser possível. Com ele, Bohannon pretende, simplesmente, virar de cabeça para baixo nossa compreensão do corpo humano e da história, que se constituiu centrada no homem. A pesquisadora passou a última década interrogando cientistas na tentativa de revelar e corrigir as limitações do raciocínio evolutivo. Tudo isso enquanto concluía o doutorado em evolução da narrativa e da cognição pela Universidade Columbia e a gestava seus filhos. 

Lançado há pouco mais de um ano nos Estados Unidos, o livro se tornou um fenômeno mundial, traduzido para mais de 30 línguas e publicado até na Ucrânia, o que deixou a autora surpresa e um tanto quanto chocada. Esse impressionante sucesso marca um debut respeitável para o primeiro trabalho literário de Bohannon e um feito grandioso para quem tinha a missão hercúlea de desfazer séculos, quiçá milênios, de interpretações equivocadas e, por vezes, mal-intencionadas.

Em entrevista a VEJA, a autora refletiu sobre o sucesso de seu livro, os desafios de colocar as mulheres no centro da construção do conhecimento científico, as dificuldades enfrentadas pelos corpos femininos e seus projetos futuros.

Levou uma década para pesquisar, escrever e finalmente concluir o livro. Você acha que nesses 10 anos o reconhecimento das contribuições femininas para o que somos hoje mudou um pouco?

Sim, claro. Mas temos que ter cuidado para não descansar nos pequenos ganhos, porque é assim que os nossos direitos terminam retirados de nós, como o direito ao aborto ou questões relacionadas ao racismo. Podemos celebrar nossas conquistas, mas precisamos manter o pé no acelerador, porque ainda há muito a ser feito.

Pode falar um pouco sobre a recepção do seu livro? E por que ainda é tão estranho para algumas pessoas verem mulheres em papéis de destaque, especialmente em relação a informações fisiológicas?

A resposta curta é sexismo. Mas a resposta longa é que tive uma resposta incrível a este livro. Fui extremamente sortuda. É meu primeiro livro, pelo amor de Deus. Isso tem sido inacreditável e me deixa muito esperançosa. As pessoas estão começando a perceber a importância das mulheres e meninas, e como temos contado essa história de maneira errada por tanto tempo. Há muita energia para revisar isso e incluir a outra metade da nossa espécie. Embora ainda haja muita resistência às conclusões que temos chegado sobre o papel das mulheres em nossa evolução, é muito positivo ver a recepção de um livro como o meu. 

No Brasil, estamos em um momento muito sensível em relação às discussões sobre o direito das pessoas sobre seus corpos. Temos um debate controverso que visa proibir o direito ao aborto, mesmo em casos de estupro, uma das poucas exceções ainda permitidas em nosso país. Qual é o impacto de não entender completamente as diferenças entre os corpos masculinos e femininos?

Sim, e o impacto seria imenso. Para a saúde de mulheres, meninas, homens, meninos e pessoas de todos os gêneros. Compreender melhor nossos corpos em suas diversas formas nos ajudará a ter uma medicina melhor. Quando se trata de direitos ao aborto, muitas vezes ignoramos que a gravidez não é um estado saudável para o corpo feminino. Não quero dizer que a gravidez seja uma doença, não é isso. Mas estamos apenas começando a entender que não há momento na gravidez que não tenha o potencial de causar danos ao corpo que está gestando. Falamos sobre a gravidez como se não tivesse custo, e isso é parte do argumento do movimento anti-aborto. Não há momento em uma gravidez humana que seja 100% seguro. E nós não falamos sobre isso o suficiente, em partes, porque não queremos assustar as pessoas grávidas, o que é justo, mas também porque não nos importamos de fato com a saúde de mulheres e meninas. Quanto mais falamos e somos honestos sobre isso, mais podemos mudar a conversa sobre o que significa estar grávida e quem realmente sofre as consequências disso.

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Você considera seu livro um livro feminista?

Eu me considero feminista. Como eu não poderia ser? Meu doutorado envolveu experimentos e análise quantitativa, algo que por muito tempo foi proibido para mulheres ou considerado não feminino. Então, só isso já me torna feminista. Nasci nos anos 80, e até recentemente o aborto era legal no meu país. Isso foi tirado da minha geração e das gerações mais novas recentemente. Fui criada em um mundo que era feminista por si só. O próprio livro, que é um livro de ciência popular, inevitavelmente se torna um projeto feminista porque escrever de maneira honesta e verdadeira sobre o impacto e a força dos corpos femininos é um ato feminista. Dizer a verdade é feminista? Aparentemente sim. Eu precisaria mentir sobre os corpos femininos para não ser feminista.

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Best Seller: Livro de Cat Bohannon investiga o processo evolutivo a partir da perspectiva feminina e já foi traduzido para mais de 30 línguas (Companhia da Letras/Reprodução)

Isso significa que você acha que a ciência também pode ser feminista sem deixar de ser ciência?

Com toda certeza! O objetivo da ciência é encontrar a verdade e ser rigorosa e autocrítica. Eu tive que ler muitas coisas que, como feminista, eu não gostava de ler. Ao escrever um livro de ciência, você precisa estar disposto a encontrar coisas que não gosta e que não se alinham com sua política. Só porque o mundo natural faz algo não significa que temos que fazer. Não deveríamos nos comportar da mesma forma que outros animais só porque eles fazem isso. Estudar melhor as diferenças sexuais e os corpos femininos entre os mamíferos, especialmente na nossa espécie, é automaticamente um projeto feminista porque melhorará a vida de todas as pessoas, incluindo mulheres e meninas. Você pensaria que simplesmente dizer essas coisas faria de mim uma humanista.

Qual é a principal mensagem que você gostaria que os leitores levassem ao ler Eva?

Cobrimos 200 milhões de anos. Não é pouca coisa, mas há muitas piadas. Seus ancestrais de 50 milhões de anos atrás não sabiam que eram engraçados, mas eram. É um livro divertido. Ao mesmo tempo, acho que a coisa mais importante a lembrar é que todo mundo que lê este livro já é a maior autoridade sobre como é viver em seu corpo. Você sabe melhor do que ninguém como é viver nesse seu corpo. Ninguém pode desafiar essa autoridade que você tem. Você tem aquela experiência profunda de ser um ser humano naquele corpo específico. O que este livro faz é lhe dar novos quadros para incluir essa história, uma nova linguagem para usar, novas perspectivas e maneiras de compreender a experiência na qual você já tem profunda autoridade. Espero que isso lhe dê novas ferramentas para usar no bom combate.

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Você disse que teve de ler muitas coisas que não gosta.  Como você integrou campos tão diversos como microbiologia, paleoantropologia, biologia evolutiva e ginecologia em uma única narrativa?

Passei muito tempo nos bancos de dados e lendo. Meu doutorado já era interdisciplinar, então estava acostumada a ser humilde, a entrar em diferentes departamentos e dizer: “Ok, aqui estão minhas ideias. Diga-me todas as formas como estão erradas. Diga-me o que estou perdendo para que eu possa estar certa. Diga-me o que estou vendo que é útil. E como posso ser útil para você com o que sei deste outro departamento?” Essa experiência me preparou para isso. Um dos desafios, por exemplo, ao escrever o capítulo sobre o cérebro, foi ter que levar muitas ideias sexistas a sério para ver se a ciência as sustentava. Levei muito tempo para garantir que estava certa, porque sabia a resposta que queria. Parte do processo envolveu voltar aos anos 1930 e 1940 e ler o trabalho de eugenistas, cientistas racistas horríveis que pensavam estar fazendo um bom trabalho, mas na verdade eram basicamente nazistas. Tive que ler isso para entender como surgimos com a ideia do que é inteligência e como desconstruí-la. Separar a boa ciência da ruim. Nunca mais farei isso comigo mesma, porque não é algo que te faz feliz. Mas, felizmente, a maior parte desse trabalho era realmente lixo científico, e não apenas por causa da minha política. Fiquei aliviada em descobrir que isso era verdade.

Pretende explorar outros aspectos da evolução humana em seus próximos trabalhos?

Meu próximo livro não será sobre evolução. Ainda estamos assinando contratos, então não posso dizer tudo. Mas posso dizer que vou olhar com muito cuidado para a saúde das mulheres e meninas humanas e algumas das novas descobertas sobre nossos corpos e como isso impacta nossa visão da saúde humana para pessoas de todos os gêneros.

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