Neste domingo, data da entrega do Oscar, a escritora americana Margot Lee Shetterly, de 48 anos, viverá a sua, digamos assim, noite de star. Antes mesmo de ser lançado, em junho de 2016, seu livro Estrelas Além do Tempo teve os direitos comprados pela Fox para a realização de um longa-metragem — que, agora, concorre às estatuetas de melhor filme, atriz coadjuvante e roteiro adaptado. Mesmo que não vença em nenhuma categoria, a festa será a consagração da autora e de sua obra, que entrou para as listas de best-sellers dos Estados Unidos. O livro, levado às telas com o mesmo título, narra a saga real de três mulheres negras que, na década de 1950, foram decisivas para o sucesso das missões da Nasa, a agência espacial americana. Nascida na Virgínia, filha de uma professora universitária e de um cientista da própria Nasa, Margot formou-se em economia e trabalhou em Wall Street antes de se dedicar à escrita. A autora acompanhou de perto a vida de suas personagens (duas eram amigas da família). As pesquisas para o trabalho a levaram a fundar a organização Computador Humano, cuja meta é resgatar feitos de mulheres nas ciências exatas. Nesta entrevista, Margot diz temer que, com Trump na Casa Branca, os avanços conquistados pelas protagonistas de sua obra estejam em risco. E adverte: “Não podemos retroceder”.
No livro, a senhora defende que o avanço dos direitos civis está diretamente ligado ao aumento do poder econômico. Não é estranho, então, tratar da luta pela igualdade de gênero e cor se apoiando na história de três mulheres negras que aceitaram ganhar menos que seus pares? A icônica manifestação de 1963 em Washington, liderada por Martin Luther King , que promovia a luta dos negros por direitos iguais, foi chamada de “marcha para empregos e liberdade”. Isso porque a liberdade econômica e o acesso a empregos dignos levam à igualdade. Essa é a batalha dos movimentos civis. Quando se pensa nas mulheres negras que aceitaram entrar em profissões recebendo menos que seus pares brancos ou, ainda, brancos e homens, é preciso compreender que elas, mesmo assim, passaram a ter um salário três vezes maior do que se fossem assumir tarefas típicas dadas às suas colegas. Antes, o máximo que poderiam ser, dizia-se, era professora. As protagonistas do meu livro provaram que conseguiam trabalhar na Nasa. Com isso, promoveram a ideia do sonho americano. O que despertou esperança para minha geração e as gerações seguintes foi ver uma mulher negra indo para o trabalho, subindo na profissão e criando um referencial para as jovens.
Essas mulheres pareciam viver em dois mundos. Em um deles, estavam entre intelectuais da Nasa. Em outro, eram discriminadas a todo momento e não podiam usar nem o mesmo banheiro das brancas. A Nasa resumia bem essa dualidade. Assim como, na vida comum, elas frequentavam igrejas, praças e bairros distintos dos que recebiam os brancos, na agência espacial havia, por exemplo, segregação de banheiros e escritórios. Só que, na prática, o fato é que elas trabalhavam lado a lado com homens brancos. Era como se fossem imigrantes, saindo de um universo negro e entrando em outro que começava a se tornar negro e branco. Elas pavimentaram o caminho em direção à maior integração que existe hoje.
A extensão da influência de mulheres negras, na Nasa e na sociedade em geral, é suficientemente conhecida? Em geral só notamos os vitoriosos, aqueles que se destacam nas notícias, nos livros de história. Nas décadas de 1950 e 1960, sendo mulher e negra, o normal era que se ficasse de fora dessas obras de referência. A realidade, entretanto, é que todas as pessoas fazem a história. Acordamos, tomamos café e, depois, tomamos decisões. Assim ajudamos a construir o que nos rodeia. O livro e o filme são sobre essas pequenas coisas diárias que nos fazem evoluir como sociedade.
A segregação prejudicava o avanço da ciência, campo no qual trabalhavam as protagonistas de sua obra? O fato é que, quando há mais pessoas pensando de forma diferente umas das outras, é maior a probabilidade de que se chegue a soluções inéditas. Afinal, quem tem a mesma origem tende a procurar respostas similares às de seus iguais. Logo, a resposta à sua pergunta é sim. É sempre positivo ter em destaque cientistas com históricos distintos e opiniões diversas, caso se queira chegar a descobertas também diversas.
Obviamente, muito se avançou nessa discussão desde a época em que se passa Estrelas Além do Tempo. No entanto, ultimamente têm sido frequentes casos de violência policial nos Estados Unidos contra negros, e mesmo situações de racismo semelhantes ao que se via no passado discriminatório retratado em seu livro. Há um retrocesso em curso? Muito mudou de lá para cá. Nós, negros, não precisamos mais nos sentar no fundo do ônibus, não estamos segregados fisicamente. Porém, ainda há muito a ser construído. Por exemplo, na Nasa de sessenta anos atrás já se falava em melhorar os salário das mulheres, igualando-os aos de seus pares masculinos — um assunto que continua em voga, pois isso não foi alcançado até hoje.
Mas a senhora acha que há risco de retrocesso? Um dos grandes presentes dos negros aos Estados Unidos foi o foco direcionado aos diretos humanos. Conseguimos constituir a ideia de que todos os americanos são iguais. A marcha de 1963 inspirou, por exemplo, as manifestações atuais de mulheres contra o discurso de Trump, um político não afeito às minorias. A luta sempre foi mais ampla do que a dos direitos dos negros. Hoje, esse espírito migrou para a defesa dos imigrantes, das mulheres e de movimento LGBT. Não podemos retroceder. Temos de continuar a garantir que viveremos em pé de igualdade, com acesso às mesmas oportunidades de emprego, de moradia — em resumo, de formas de viver.
Na sua opinião, o governo de Donald Trump representa uma ameaça às conquista no campo dos direitos humanos? Nossos direitos garantidos, a base da busca pela felicidade e pela igualdade, estão ameaçados por ele. Quem está legalmente morando em meu país não pode, do dia para a noite, correr o risco de perder suas posses e ser deportado por uma decisão de um presidente arbitrário. Cidadãos também não devem se sentir em risco frente à polícia, por serem julgados pela classe social a que pertencem ou pela cor de sua pele. Antes de Trump ganhar, duvidávamos se era para levar a sério seu discurso discriminatório. Agora, sabemos que ele pretende cumprir suas promessas. Ele afirmou que ia construir um muro na fronteira com o México e já anunciou que irá fazê-lo. Avisou que baniria imigrantes, e foi o que de fato tentou fazer.
Ser alvo direto de discriminação, como foram as protagonistas de Estrelas Além do Tempo, ajuda a fortalecer uma pessoa para que ela reaja? Quando você tem poucas opções para tocar a própria vida, é natural que aprenda a se virar melhor com recursos escassos. Foi o que aconteceu com as mulheres da história que conto. Tanto profissional quanto pessoalmente, elas tiveram de resolver problemas com muita criatividade, usando as parcas ferramentas que dispunham. Com isso, descobriram novas soluções. E, sim, se fortaleceram.
Dorothy, Mary e Katherine, as mulheres de seu livro, tomavam atitudes inovadores naquele tempo, caso das ações em prol do feminismo, mas já as classificavam como conquistas individuais que acabavam por significar vitórias para todas as negras. A senhora ainda vê esse senso de coletividade no mundo atual, que parece regido pelas opiniões egoístas expressas em perfis nas redes sociais? As redes fazem toda a diferença, por um sentido. No passado, elas eram formadas pelas igrejas e irmandades universitárias. Hoje, pode ser em grupos de Facebook. Trata-se de um ambiente propício para unir forças com iguais. Contudo, hoje, um dos grandes problemas é que os que lutam por direitos civis muitas vezes não percebem que se trata de uma batalha de todos. Por exemplo, quem votou em Trump no meu país muitas vezes considera que a briga por leis justas a todos não é interessante para si. Só para negros, gays e outras minorias. Ocorre que esses mesmos indivíduos não percebem que as questões afetam a todos que vivem sem privilégios. O que inclui brancos pobres. Dos quais, uma boa fatia votou em Trump. O que falta, na realidade, é simples: compreender que somos todos iguais. E, por isso, devemos comprar as mesmas batalhas em prol dos direitos civis.
No dia a dia, é possível detectar quando se é discriminado? Existem esses momentos. Mas, como diz Katherine, uma das personagens do meu trabalho, você tem de escolher como reagir. Muitas vezes não dá para saber se alguém tratou você diferente por ser negra, por ser mulher ou por qualquer outro motivo. Meus pais me educaram para que eu pudesse ser quem eu quisesse ser. O essencial é garantir esse meu direito. Como exemplo do que falo, as negras trabalhadoras da Nasa dos anos 50 tinham de lutar em muitas frentes. Por serem mulheres. Por serem negras. Por terem origem pobre. Hoje, há conceitos estruturados que atestam como era errado o modo como as tratavam. Porém, no dia a dia, elas só pensavam: “Sou boa no meu emprego, estão me impedindo de participar de uma reunião, como vou resolver?”. Elas queriam achar uma saída. Foi o enfrentamento diário, a vontade de garantir ser quem se quer ser, que originaram as teorias e as lutas mais amplas em prol de igualdade de gênero e de cor.