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“O Brasil está bem atrasado na legislação sobre maconha”

Segundo Sidarta Ribeiro, neurobiólogo e autor de "As Flores do Bem", é preciso reconhecer as evidências científicas que já existem sobre o tema

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 out 2023, 13h01 - Publicado em 24 out 2023, 06h00
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  • Embora o debate sobre as propriedades terapêuticas e recreativas da maconha seja atual, seu uso, na realidade, é muito antigo. Trata-se de uma das primeiras plantas cultivadas pelo ser humano, usada na China e na Europa como matéria-prima do cânhamo naval e na África e Índia como unguento medicinal. Hoje, volta-se a discutir se ela deve ser liberada ou não, mas enquanto a pauta avança rapidamente em outros países, no Brasil ela ainda segue em passos lentos. Em seu novo livro, “As Flores do Bem (Fósforo Editora, 184 págs., R$ 59,90), o neurobiólogo e pesquisador Sidarta Ribeiro conecta temas de ciência, política e economia com sua experiência pessoal para apresentar o tema de forma acessível, mas embasada. E vai além, afirmando que não apenas a maconha oferece amplas indicações, mas substâncias psicodélicas, antes proibidas, oferecem esperança para o tratamento de trauma, depressão e outras condições.

    Como a legislação sobre maconha avançou no Brasil em comparação com outros países?
    O Brasil está bem atrasado. E por causa desse atraso existe um vácuo de regulação, o que explica porque tanta gente
    pede habeas corpus para cultivo doméstico e porque existem tantas associações, em um contexto de oligopólio de IFA (o princípio ativo dos medicamentos). É uma situação que para o tamanho e e o potencial do Brasil não faz o menor sentido, do ponto de vista da produção da matéria-prima da cannabis em termos terapêuticos.

    Mas houve avanços relevantes?
    Sim, porque quem está doente tem pressa. Há duas iniciativas principais acontecendo. Uma, no Congresso, é o PL 399, que regulamenta a atividade das empresas, inclusive para o cultivo nacional e também das associações de pacientes. Ele tem várias limitações, não prevê o cultivo doméstico, coloca critérios muito restritivos para as associações, mas ainda assim é um avanço. Foi aprovado em comissão e vai a plenário em algum momento.
    A outra iniciativa é o recurso extraordinário que está sendo julgado no STF, motivado por um caso de porte de maconha de uma pessoa que havia sido detida. Não se discute o uso terapêutico, mas o direito de portar a substância sem causar dano a outras pessoas. Parece, pelo caminhar dos votos, que essa tese vai ser aprovada.

    O PL 399 pode sofrer ainda mais mudanças antes de ser finalmente aprovado?
    Não sei o que esse congresso, com a composição atual, vai fazer com essa peça de legislação. Temo que será feito um esforço para tirar as associações e deixar só as empresas, o que não serve ao povo brasileiro. O mais eficiente é garantir o maior número possível de maneiras de obter os medicamentos.

    O que está em jogo na opinião pública brasileira?
    A legitimidade do uso terapêutico e do uso adulto. Uma pesquisa recente mostrou que a maior parte da população é a favor do uso medicinal, e uma porcentagem parecida era contra o uso recreativo, ou adulto. Mas as pessoas esquecem que o uso recreativo frequentemente também é terapêutico.

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    A liberação da maconha se tornou uma questão ideológica. Como superar essa barreira?
    Eu diria que a pauta da maconha rompeu a polarização esquerda e direita porque existem pessoas na direita que defendem a legalização por razões econômicas, e olham para a maconha como commodity. E existem pessoas da esquerda que defendem a legalização por acesso de baixo custo e alta eficiência. São dois modos de olhar que, nesse momento, convergem.

    Mas há críticos veementes à maconha em todas as suas formas.
    Existe outra parte da direita que fomenta o pânico moral contra a maconha. E ele é acompanhado pelo pânico moral contra negros, pessoas faveladas. Nos Estados Unidos, na época de Trump, também contra os mexicanos. Há toda uma racialização desse debate e que vem empacotado em um discurso religioso.

    Por que há tantas lacunas na pesquisa relacionada à cannabis?
    Quem faz ciência sabe que o grau de evidência que você tem para determinado postulado ou afirmativa varia muito de acordo com os estudos que foram feitos. Parte do problema é que muitas pesquisas não foram feitas porque não houve financiamento. Ensaio clínico é muito caro e ninguém vai pagar por isso se não puder patentear.

    Apesar disso, há comprovação contundente em alguns casos...
    Para epilepsia, para dor neuropática, para mitigar os efeitos adversos da oncoterapia, inclusive para tratar certos tumores, e uma série de outras condições que
    poderíamos listar aqui, as evidências vêm se acumulando. Em alguns casos, como na epilepsia, elas são acachapantes. É o que chamo no livro de “ippon científico”. Em outros casos, são extremamente promissoras.

    E em relação ao Alzheimer?
    Nos Estados Unidos, há estudos que mostram que THC e canabinol podem ser eficazes para retirar a proteína betamilóide dos neurônios e potencialmente desacelerar e até reverter os efeitos da doença de Alzheimer.

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    Críticos da maconha dizem que ela se tornou uma panaceia contra todos os males. Como o senhor vê a questão?
    É uma crítica válida e merece uma resposta qualificada. Não existe panaceia. Nenhum remédio serve para tudo. O que existe, no caso da maconha, são múltiplas indicações. Elas não são magia nem o desejo das pessoas que gostam da maconha, mas uma expressão da complexidade do sistema endocanabinoide. É um sistema que todas as pessoas que nos leem possuem, e que produz substâncias semelhantes àquelas contidas na maconha.

    Capa de
    Capa de “As Flores do Bem” (Editora Fósforo), que chega às lojas no início de novembro – (Divulgação/Divulgação)

    Se já existem tantas dificuldades para aprovação da maconha, como superar os desafios relacionados aos psicodélicos?
    Os psicodélicos formam uma classe de substâncias que foram proibidas no século 20 e retornam agora à medicina pela porta da frente, sobretudo no âmbito da psiquiatria, e com alguma perspectiva no âmbito da neurologia. Não dá para tapar o sol com a peneira. O que funciona e as pessoas ficam sabendo, elas querem. É o que vem acontecendo nos Estados Unidos, na Europa, em Israel, na Austrália.

    O Brasil tem papel decisivo nessa discussão?
    O Brasil é hoje o terceiro país que mais produz estudos sobre psicodélicos, atrás de Reino Unido e Estados Unidos.

    Como essas substâncias podem ser usadas?
    Elas representam uma grande esperança para lidar com traumas e depressões. Não como um substituto para antidepressivos convencionais, mas na lógica de que pode ser feita uma psicoterapia assistida por psicodélicos. Há menos ênfase só na substância e mais na complexidade do sistema terapêutico, que é interação entre terapeuta, paciente, substância e o contexto de administração.

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    Em várias culturas, a administração desses psicodélicos é acompanhada de rituais espirituais. Isso afeta o tratamento?
    Quando a maconha começou a ser cultivada, primeiro na China e depois na Índia, a medicina e a religião estavam muito interligadas. Essa união não deixa de ser verdade até hoje. Porque a crença do paciente no tratamento é fundamental para o desfecho. A interação entre as causas, digamos, fisiológicas ou farmacológicas de uma cura e a parte psicológica é profunda. Sabemos pouco sobre isso, mas o que sabemos indica que é preciso resgatar o que se perdeu nas terapêuticas ancestrais.

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    Há um aumento evidente de novas igrejas e centros espirituais que apregoam o uso de psicodélicos. Há risco de apropriação cultural de elementos tradicionais de povos indígenas nesse contexto?
    A produção de cultura e suas interações econômicas são extremamente anárquicas e multivetoriais. Existe um debate muito urgente sobre repartição de benefícios. Veja o exemplo do Ayahuasca, uma invenção ameríndia. Se alguém deve deter a propriedade intelectual do ayahuasca são esses povos ameríndios. Mas existem empresas, no norte global, que tentam patentear o nome ayahuasca e formulação. O capitalismo é uma selva de predação e acho que devemos olhar para a questão com cuidado porque o risco de apropriação é evidente.

    Mas há algum benefício nesse tipo de instituição?
    As pessoas precisam de tratamento, de reconexão. E todos têm liberdade de culto. Vemos uma multiplicidade de fenômenos que acontecem em paralelo e à revelia de outra parcela da sociedade que busca esse êxtase no contato com o Espírito Santo durante a Eucaristia, na matriz cristã. Essas religiões sincréticas são uma mistura de crenças cristãs com crenças ameríndias e africanas. É tudo muito fascinante do ponto de vista antropológico, mas requer cuidados.

    Quais cuidados?
    Como pesquisador e biólogo acho que a gente deve respeito e cuidado com os povos originários que realmente fizeram essas descobertas milenares.

    Elas ainda são vistas como perigosas por muitas pessoas...
    Acho que a discussão vem avançando e faz com que a ficha comece a cair para muitas pessoas. Elas percebem que foram enganadas durante boa parte do século 20. Diziam que algumas substâncias foram proibidas porque eram muito perigosas, e outras foram legalizadas por serem muito seguras. Isso não é verdade. Veja o álcool, que é lícito em quase todas as partes do mundo, mas tem muitos riscos tanto para o usuário quanto para o ambiente social. Isso não significa que devemos demonizar o álcool. Nenhuma substância deve ser demonizada, e nenhuma deve ser glorificada.

    Seu novo livro sai em um momento de avanços de legislação, mas também de desinformação. Qual foi a motivação para lançá-lo agora?
    Eu já havia feito isso antes, em 2007, com “Maconha, Cérebro e Saúde”, em parceria com Renato Malcher-Lopes. Mas aquele livro surgiu em um contexto estrito de divulgação científica. Agora, “Flores do Bem” vai além ao conectar temas de ciência, política e economia com minha experiência pessoal. Após anos de palestras e eventos, quis colocar toda essa experiência de forma acessível.

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