O que diferencia humanos de macacos?
Um novo estudo destacado em reportagem em VEJA levantou uma percepção: apesar de popular, a ideia de que somos 99% iguais aos chimpanzés é falsa
Em 1975, foi publicado um artigo na revista científica Science em que um professor da Universidade da Califórnia e sua aluna anunciavam que o DNA do ser humano seria 99% idêntico ao de um chimpanzé, primata que é o parente mais próximo da nossa espécie. O anúncio fez cair por terra a ideia de que a espécie humana é superior às outras. Afinal, como poderíamos sê-lo, se somos praticamente iguais a um macaco, animal muitas vezes retratado como inferior? No entanto, uma parte importante da história é omitida quando se reproduz a ideia de que somos 99% idênticos a eles.
Para chegar a esse número, os pesquisadores responsáveis pelo estudo compararam, é claro, o genoma humano e o genoma desses símios. O que não ficou claro foi a forma utilizada para chegar à porcentagem dos 99%.
O DNA é composto por pares de bases nitrogenadas, as quais codificam informações genéticas. Ao sobrepôr as sequências de bases encontradas em nós e nos chimpanzés, os cientistas se depararam com diversos trechos que não estavam presentes nos dois genomas — isto é, porções de DNA sem correspondência entre os dois animais. Além disso, encontraram trechos que estavam presentes em ambos, mas em porções distintas do DNA, e trechos que de fato eram idênticos, posicionados no mesmo local.
Para escrever o artigo, os pesquisadores desconsideraram as partes sem correspondência nos dois materiais genéticos, o que equivalia a um total de 1,3 bilhões de bases nitrogenadas. Assim, esse número, que representa 18% do genoma dos chimpanzés e 25% do genoma humano, foi ignorado na pesquisa. A comparação propriamente dita se deu entre as bases remanescentes, que eram 2,4 bilhões. Foi entre esses 2,4 bilhões de bases que foi constatada uma similaridade de 99%.
Ou seja: apesar de ser muito significativa, — sobretudo para a década de 70, quando não se dava valor à semelhança que compartilhamos com outros primatas — a simetria encontrada entre nós e eles é muito menor do que aquela que foi propagada por muitos anos.
Desde então, muitos outros estudos foram publicados em que a se investigou a semelhança do DNA do Homo sapiens com seus parentes. As porcentagens estimadas foram de 96%, 98%, entre outras conjecturas. Um parecer mais recente que foi aprovado por grande parte da comunidade científica é bem menor: 70%. Esse, sim, levaria em conta as partes não correspondentes entre os materiais genéticos.
Seja como for, as correspondências são inegavelmente muitas. Contudo, não é difícil encontrar diferenças genéticas entre o homem e os chimpanzés. Há muitos casos que servem para ilustrar a longa lista de distinções encontradas quando comparamos os nossos materiais genéticos.
Um deles foi explorado na edição número 2644 de VEJA, na qual se fala sobre um estudo que revelou o motivo pelo qual o ser humano é, de longe, o animal com maiores chances de ter doenças cardíacas. Tudo se deve ao desaparecimento de um gene do DNA de um ancestral do Homo sapiens que, entre outras coisas, regula a produção de uma molécula ligada à formação de gorduras nos vasos sanguíneos. Em nenhum outro ser vivo (em seu estado natural), nem mesmo nos primatas, pode ser observada a síntese de gordura nas artérias de forma tão frequente.
Um outro bom exemplo é a refinada habilidade de comunicação. Chimpanzés possuem, sim, a capacidade de se expressar e de trocar informações uns com os outros. No entanto, a presença da linguagem de forma mais estruturada e elaborada é exclusividade humana — e grande parte do processo se deve à genética. De acordo com estudos recentes, o gene FOXP2, presente apenas na nossa espécie, é responsável pela habilidade de associar automaticamente palavras a imagens e experiências. Sem ele, a linguagem como a conhecemos seria impossível.
Outra distinção, também a nível microscópico, entre nós e os grandes primatas (isto é, gorilas, chimpanzés e orangotangos) é o número de cromossomos. O ser humano apresenta 23 pares de cromossomos, à medida que os membros do outro grupo têm 24. A assimetria vem do fato de que, depois de nosso ramo evolutivo se separar do ramo que originou os macacos modernos, dois cromossomos do homem se fundiram, diminuindo o nosso número cromossômico. O dos símios, no entanto, permaneceu intacto. Essa mudança ocorreu por meio da mutação, processo evolutivo aleatório e despropositado.
Ainda outra diferença traz resultados que podem ser observados a olho nu: é também a genética que explica o porquê de sermos o primata com mais tendências a engordar. Enquanto os outros membros do grupo possuem taxas de gordura corporal de menos de 9%, nós, graças a uma mudança na forma como o DNA é armazenado nas células de gordura, costumamos ter entre 14% e 31%. Um maior acúmulo desse tipo de tecido, que pode ser transformado em energia, foi uma grande vantagem evolutiva, já que nossos cérebros desenvolvidos — proporcionalmente muito maiores do que os de quase todos os outros mamíferos — exigem muita energia para operar.
Apesar das muitas distinções já constatadas, pode-se questionar: e se a semelhança dos genomas inteiros, inclusive as partes ignoradas pelos pesquisadores em 1975, fosse realmente de 99%? Ainda assim, haveria inúmeras divergências entre nossos materiais genéticos.
Pense assim: o DNA é formado pela combinação entre pares de bases nitrogenadas. A estimativa é de que cada célula humana contenha aproximadamente três bilhões de pares de bases. Se o que nos separa dos chimpanzés é 1% do DNA, isso equivaleria a 30 milhões de diferenças dentro de uma única célula — das quais temos trilhões.
De qualquer forma, é um verdadeiro abismo genético que nos separa até mesmo dos nossos parentes mais próximos. Dadas as gigantescas dimensões do DNA, não é de se admirar. Nosso material genético é armazenado de forma compacta, em que as moléculas se enrolam em si mesmas e, assim, permitem que guardemos muita informação biológica em um minúsculo espaço físico. Se fosse possível desenrolar o DNA de apenas uma célula e então colocá-las lado a lado, a estimativa é de que seu comprimento seria de cerca de 2 metros. Juntando todas as células do corpo humano, teríamos DNA suficiente para percorrer duas vezes o diâmetro do sistema solar. Imagine quantas diferenças cabem nesse espaço.