Os celulares podem, sim, ajudar a ampliar a nossa memória, diz pesquisa
Ao contrário do que se pensava, transferir para os aparelhos o trabalho de guardar informações não freia a capacidade da lembrar de fatos e compromissos
Desde que o mundo é mundo, a introdução de novidades capazes de revolucionar o cotidiano é encarada inicialmente com uma significativa dose de desconfiança. Enquanto discípulos diligentemente registravam seus discursos e preservavam seu pensamento para a posteridade, o grego Sócrates preocupava-se com a possibilidade de o uso sistemático da escrita tornar as pessoas mais esquecidas. Milênios depois, o advento do rádio e, depois, da televisão foi acompanhado de alertas sobre o perigo de que áudio e imagem de fácil acesso desestimulassem a população a ler, escrever e pensar. Atualmente, as suspeitas recaem sobre o efeito de celulares, tablets e computadores na memória — armazenar tudo nas maquininhas estaria corroendo a capacidade individual de lembrar de fatos e compromissos.
E eis a surpresa: uma recente pesquisa mostra que delegar a guarda de dados para os dispositivos eletrônicos pode ser bom para o cérebro, sim, a ponto de expandi-lo em alto grau. “A preocupação em escolher o que não esquecer é uma marca de nossa sociedade. A tecnologia veio facilitar esse processo, diante da quantidade incalculável de informação com que lidamos diariamente”, diz Patrícia Macêdo, historiadora e doutora em ciência da informação.
Terceirizar a memória para celulares e afins na verdade libera espaço no cérebro para a sedimentação de novos conhecimentos. “Em vez de causar a temida demência digital, usar dispositivos externos para armazenar informações pode, isso sim, liberar nossa memória uma assimilar uma maior quantidade de dados”, afirma Sam Gilbert, neurocientista da University College London, no Reino Unido. Gilbert liderou o estudo, divulgado em julho, que demonstrou que o hábito de descarregar informações em smartphones e computadores aumentou em 18% a capacidade dos usuários de reter novas informações importantes e em 27% a memória para questões menos relevantes. Conclusões semelhantes foram obtidas em pesquisas feitas por cientistas das universidades de Toronto, no Canadá, e de Cincinnati e da Califórnia, nos Estados Unidos. “As ferramentas digitais acabam liberando espaço da memória para novos aprendizados”, confirma Cristiane Furini, coordenadora do Laboratório de Cognição e Neurobiologia da Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS.
Municiar-se de lembretes na forma de blocos e agendas sempre fez parte do arsenal contra o esquecimento. Mas a rotina da vida moderna, lotada de compromissos e informações, praticamente impõe a transição para aplicativos e outros recursos digitais. “É como se livrássemos espaço no cérebro. Se está anotado no dispositivo, está seguro”, compara Jéssica Lucena, psicóloga e mestre em processos educativos. Além da facilidade de uso, a armazenagem terceirizada faz mais do que simplesmente registrar números de telefone, endereços, datas e listas. “Ela permite que o conteúdo salvo nelas esteja disponível em diversos dispositivos conectados à internet, sem falar na possibilidade de compartilhamento e nos alertas automáticos”, diz Ronaldo Prass, especialista em ciência da computação.
A introdução do trabalho remoto na vida de quase todo mundo acabou sendo o pontapé definitivo para a opção preferencial pela memória eletrônica. Foi justamente nessa fase que a jornalista mineira Gabriela Moscardini, 27 anos, desapegou-se de sua pilha de cadernos de papel. “Eu passei a ter tantos compromissos on-line que tive de adotar agendas e blocos de notas digitais para organizar minha rotina. É mais prático, porque tenho tudo ao alcance do celular”, diz. O advogado Guilherme Teixeira, 27 anos, também descobriu na agenda virtual uma importante aliada na tarefa de organizar seu tempo entre labuta e lazer. “Sempre me esqueço de datas, então fico mais tranquilo ao saber que o aplicativo vai me lembrar delas.” Os lembretes eletrônicos também ganham dos analógicos no quesito segurança. Depois de perder muitas anotações, o ator e produtor cultural Lucas Moreira, 38 anos, sentiu alívio ao confiar suas mais valiosas informações aos dispositivos digitais. “Mesmo que meu celular dê algum defeito, posso recuperar as informações salvas na nuvem”, relata.
Ainda que as pesquisas apontem vantagens, em vez de riscos, no uso de celular para armazenar dados, os especialistas ressaltam que a capacidade do cérebro humano de reter conhecimento depende basicamente da atenção dispensada à sua aquisição. “Lapsos de memória costumam ocorrer quando não estamos focados. As informações que adquirimos enquanto estamos fazendo ou pensando em outras coisas provavelmente não serão tão bem processadas e lembradas posteriormente”, observa a médica Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da USP. É recomendável, porém, que se aplique certa leniência para com os esquecimentos, que na maior parte das vezes são normais e corriqueiros. “Os lembretes, eletrônicos ou não, são uma forma de esticar a memória. Deixar de usá-los com o objetivo de aumentar a capacidade cerebral será um exercício em vão, porque a mente tem seu limite”, lembra a neurocientista Livia Ciacci.
Outro ponto sempre ressaltado, em paralelo ao uso contínuo das facilidades oferecidas pelas ferramentas digitais, é a prática constante de atividades off-line para manter o cérebro afiado. A receita é conhecida e de fácil implementação: atividade física regular, alimentação saudável, tempo adequado de sono e aprendizado de conteúdo novo, como um idioma ou um instrumento, podem prevenir perdas significativas de memória. “O cérebro gosta de novidades. Precisamos prover esses estímulos positivos sempre que pudermos”, ensina Cristiane Furini, professora da escola de medicina da PUCRS. Enquanto a ciência segue investigando os impactos da tecnologia sobre as conexões cerebrais, é bom não esquecer que mente ágil é mente constantemente desafiada. Anote.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805