Os novos ângulos da rainha: Cleópatra é redescoberta, agora longe dos mitos europeus
Personagem sempre exerceu fascínio sobre a humanidade

Não há páreo. Nenhuma mulher hipnotizou tanto e durante tanto tempo (são mais de 2 000 anos) a atenção de súditos, inimigos, pesquisadores e artistas como a última rainha do Egito. Das moedas com sua efígie às sucessivas aparições no cinema — a mais famosa, sem dúvida, na pele de Elizabeth Taylor —, Cleópatra é a prova rediviva de que seres humanos viram lenda moldados pelo tempo e pela pena dos que escrevem a história e a maquiam de acordo com suas preferências, paixões e preconceitos. Desde que uma escola de pensamento anticolonial ganhou terreno do século XX em diante, revendo e reparando as construções de berço europeu, e novas peças e documentos vieram à luz sob maior rigor científico, o ícone egípcio que se aliou a ninguém menos que o maior líder dos romanos também passou por uma repaginação. Saiu de cena a figura meramente sedutora e brotou a personagem de inteligentes posturas políticas. Exemplo retumbante desse itinerário e das transformações de tão longeva figura pode ser visto e apreciado em uma exposição recém-inaugurada no Instituto do Mundo Árabe, em Paris, O Mistério de Cleópatra. É o mito desmistificado pelas lentes orientais.
Cleópatra (69 a.C.-30 a.C.), a sétima de seu nome — sim, houve outras antes dela, mas nenhuma igual a ela —, provém de uma dinastia greco-macedônia iniciada por um militar que acompanhou Alexandre, o Grande, em suas investidas de expansão pelos continentes africano e asiático, Ptolemeu. Cresceu e apareceu em meio a rinhas familiares na então capital do país, Alexandria, e conheceu César, o general romano, aos 22 anos em um momento em que Roma ampliava seus domínios. “Ela era instruída, inteligente, possivelmente virgem e poliglota, falando grego, latim, etíope, egípcio e a língua que César mais respeitava: a do poder”, descreve o historiador britânico Simon Sebag Montefiore em O Mundo — Uma História Através das Famílias (Companhia das Letras), que reserva boas páginas à personagem. Protegido pelo senhorio romano, o Egito ficou sob o trono de Cleópatra, que chegou a ter um filho com César, morto pouco tempo depois no famoso episódio de traição envolvendo Bruto. Foi aí que outro general entrou na história… e na vida da monarca.

Marco Antônio se apaixonou por Cleópatra e eles tiveram gêmeos, mas, em prol do jogo pelo poder, logo deixou o Egito para trás para se casar com a irmã de outro líder em franca ascensão, Otaviano. Em 38 a.C., o marido fujão teve seu Exército dizimado numa campanha pela Ásia. Então, eis que aparece Cleópatra, comandando barcos com suprimentos para salvar o amado. “Seu apoio, seus acessos de raiva e os filhos que compartilhavam convenceram-no de que seu destino era com ela”, escreve Montefiore. Marco Antônio voltou ao Egito. A paz, porém, não ia durar. Otaviano fez uma campanha difamando o general e o “monstro fatal” Cleópatra, e o Senado declarou-a inimiga — era a guerra pelo mundo mediterrâneo. A rainha participou ativamente dos planos de batalha, mas o vento virou para Otaviano, o futuro primeiro imperador romano. A herdeira dos faraós ainda negociou à surdina com o rival para poupar seus filhos. No fim, perdeu a contenda, suicidou-se com veneno aos 39 anos — a mítica cena da cobra de Cleópatra —, mas entrou de vez para a história.
“Por que tanto renome?”, indaga a apresentação da mostra no Instituto do Mundo Árabe, de Paris. “Pinturas, esculturas, gravuras, manuscritos, objetos arqueológicos, joias e moedas, trajes, projeções, fotografias… Tudo oferece respostas”, continua o texto, que reúne obras de museus muito além da França. Um dos aspectos mais interessantes dessa incursão é trazer o que autores árabes daquelas e subsequentes eras pensavam da personagem. Diferentemente do imaginário romano, muito mais ferino, eles destacaram suas qualidades intelectuais e seu papel como chefe de Estado. No Ocidente, a partir dos retratos nada lisonjeiros dos vencedores de Roma, Cleópatra tornou-se símbolo de luxúria, traição e perigo. Embora as mais recentes biografias, baseadas em farta pesquisa, desmintam essa visão — ainda que ela tenha tomado decisões como pedir a cabeça da própria irmã a Marco Antônio, algo um tanto quanto frequente naquela e em outras cortes antigas —, a rainha do Egito ganhou as telas do cinema como uma deslumbrante e maquiavélica diva europeia. O que a exposição em cartaz em Paris quer distinguir e evidenciar é onde “o mito prevaleceu sobre os fatos”.

Sob essa óptica, a mostra apresenta também a virada de percepção que decolou no século XX, quando Cleópatra passou a ser utilizada como ícone de movimentos identitários, de independência e resistência ao colonialismo. Mais recentemente, chegou a ser apresentada como negra numa série de streaming, símbolo de uma África frequentemente atacada e dominada por estrangeiros. E, rompendo as fronteiras geográficas, sua imagem foi realçada como a de mulher que soube fazer sua voz ser ouvida, adornando o panteão feminista. Eis a rainha, sob novos ângulos e direções, mas sempre, sempre fascinante. Cleópatra não para de nos surpreender.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950