Os números não mentem sobre a dificuldade de frear o aquecimento global
Em novo livro, cientista e ambientalista checo também aponta qual é a mais confiável medida de desenvolvimento de uma nação
O universo inteiro poderia ser explicado em números, mas, caso não se queira ir tão longe, eles podem ser usados para entender problemas práticos que afligem a humanidade, apontando caminhos para políticas públicas — é o que defende o cientista Vaclav Smil, cujos livros são recorrentemente recomendados por Bill Gates, gênio inventor, criador do sistema Windows e hoje filantropo divorciado. Smil, um septuagenário que emigrou em 1969 da antiga Checoslováquia para os Estados Unidos e, depois, para o Canadá, é professor emérito da universidade de Manitoba e autor de Números Não Mentem (leitura de cabeceira do fundador da Microsoft, ainda sem versão em português). Pesquisador multidisciplinar e ambientalista convicto, com mais de quarenta livros e 500 teses publicadas, ele expõe em seu mais recente trabalho uma verdade inconveniente que muitos defensores do planeta, repletos de boas intenções, se recusam a encarar: a humanidade está longe de encontrar a solução para a substituição dos combustíveis fósseis, o aquecimento global e a deterioração da biosfera, principalmente porque a dependência de energia é maior do que se pode imaginar.
Todos os seres vivos precisam de energia, bem como as máquinas criadas pelo homem. Por esse motivo, Smil usa a perspectiva do gasto em joules — unidade de medida de energia — como premissa para tudo que vive ou é fabricado. É assustador imaginar que cada pessoa, mesmo que nem ande de carro, consuma, em média e ao ano, 150 bilhões de joules, o equivalente à queima de 3,5 toneladas de combustível fóssil. Obviamente, o homem não bebe petróleo, mas Smil lembra que todos os derivados, além do carvão e do gás natural, estão de tal forma imiscuídos no cotidiano que é difícil imaginar o que aconteceria se deixassem de existir. Os detratores do professor argumentam que o objetivo não é eliminar esses combustíveis, mas substituí-los aos poucos por fontes alternativas de energia, que reduziriam a emissão de gases de efeito estufa. Smil reconhece os esforços, mas pede que se examinem os fatos.
Tome-se a aviação comercial: não existirá nas próximas décadas uma bateria que sustente no ar jatos de passageiros. Suas turbinas dependem exclusivamente de querosene, combustível derivado do petróleo, e queimam mais de 420 bilhões de litros por ano. E, mesmo que todas as aeronaves ficassem no chão de agora em diante — extinguindo assim o turismo e levando milhões à miséria —, o que seria feito dos navios cargueiros? Eles consomem quantidades semelhantes em diesel, mas são responsáveis por 80% do comércio mundial de alimentos e bens de consumo. O primeiro projeto de cargueiro elétrico ainda não conseguiu resolver o inconveniente de que sua bateria ocupa 40% do compartimento de carga e que ele só consegue singrar curtas distâncias. Para o leitor não se perder, Smil pede que seja aplicado o mesmo raciocínio em todos os campos de atividade. A humanidade, por exemplo, tem hoje um rebanho de 1,5 bilhão de bois, os mamíferos vertebrados em maior número na superfície da Terra, atrás apenas do próprio homem. Esse gado, ainda indispensável fonte de proteína, deixa pegadas de carbono em toda a cadeia produtiva, inclusive no cultivo de grãos, plantados para alimentar as espécies humana e bovina. Bilhões de litros de combustíveis fósseis são usados na produção de fertilizantes que, se eliminados, reduziriam as colheitas, matando de fome homens e animais.
O pesquisador mostra-se cético até mesmo com carros elétricos e turbinas eólicas, aclamadas alternativas que, segundo ele, ainda consomem tanto combustível fóssil para serem produzidas que demoram anos para pagar a energia poluente usada na fabricação. Qual seria então a solução para o aquecimento global? Smil não tem resposta, mas afirma que o produto interno bruto é uma péssima forma de medir o grau de desenvolvimento de uma civilização. Por ser apenas uma soma de riquezas, ele pode subir até mesmo quando o país está em convulsão e aumenta seus gastos em segurança. O cientista não encontra melhor índice para medir a qualidade de vida do que a taxa de mortalidade infantil. Os campeões são 35 nações com taxa abaixo de cinco mortes por 1 000, encabeçadas pelo Japão. Parte-se aqui da ideia de que, se as crianças sobrevivem, é porque a nutrição é satisfatória, assim como o saneamento, os hospitais e a vacinação — esta responsável por salvar milhões de bebês. Nem os Estados Unidos, com o maior PIB do mundo, conseguem ser perfeitos, já que as diferenças sociais lá existentes ceifam a vida de seis a cada 1 000 recém-nascidos todo ano. A taxa de mortalidade brasileira, de 12,4, já foi pior, mas continua vergonhosa. Assim dizem os números, que não mentem.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751