No início dos anos 1920, levado por um batalhão de repórteres em Nova York a responder por que insistia tanto em chegar ao cume do Everest, o alpinista britânico George Mallory disparou uma frase que até hoje reverbera nas encostas da Cordilheira do Himalaia, na fronteira entre o Nepal e o Tibete, região autônoma controlada pela China: “Porque está lá”. Mallory desapareceu em 8 de junho de 1924, há exatos 96 anos, na face norte do fascinante colosso, a 250 metros do objetivo, sem jamais ter cravado a bandeira no topo de gelo. Estar lá, mas estar lá onde — ou, mais precisamente, a que altura? A mítica marca foi medida pela primeira vez em 1954: na ponta do lápis, são 8 848 metros, o ponto mais alto do planeta Terra, cifra adotada pelos nepaleses como troféu. Para os chineses, que trataram de refazer os cálculos, subtraindo a camada de gelo e neve, e cutucando os vizinhos, está tudo errado: são 8 844 metros, 4 a menos. Sim, apenas 4 metros a menos. A diferença de 400 centímetros é decisiva — tem valor histórico e, do ponto de vista simbólico, é relevante para os envolvidos na queda de braço, alimentando a guerra fria entre Nepal e China.
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Clique e AssinePuxa daqui, puxa de lá, é refrega que pode estar com os dias contados — ou adiada até a próxima polêmica. Um grupo de pesquisadores de Pequim foi autorizado, excepcionalmente, a quebrar a quarentena do lugar, temporariamente fechado para ascensões em decorrência da pandemia de Covid-19. Ao alcançarem o ápice, depois de brigar com recorrentes nevascas, eles montaram uma torre que “conversa” com uma antena de celular 5G, previamente instalada na base da montanha por outro grupo, e que emite sinais para 35 satélites que orbitam acima de nossa cabeça (veja o quadro). Os cientistas aventureiros também coletaram dados sobre a profundidade da neve, o clima e a velocidade do vento, que serão usados para monitorar a deterioração das geleiras e outros impactos ecológicos das mudanças climáticas. A equipe passou quase três horas no cume antes de iniciar a caminhada de volta ao acampamento. Ali eles ficarão por pelo menos mais três meses.
A iniciativa da China, mais do que um feito tecnológico, de evidente demonstração de força, é sinônimo da vontade do presidente Xi Jinping de esconder as garras, de acenar com bandeira branca para o Nepal. A decisão de medir o Everest foi resultado de um dos encontros diplomáticos entre os dois países. Mas há também outra explicação: um forte terremoto abalou a região em 2015, e muito possivelmente as novíssimas condições geológicas podem ter alterado, ainda que minimamente, a formação rochosa — mudando o que de fato importa para quem tem fascínio por limites: o ponto máximo do gigante.
A aferição do tamanho do Everest ajudará a manter em primeiríssimo plano, no imaginário popular e dos esportistas, a fama daquele canto do mundo, palco de feitos extraordinários, mas também de tragédias. No ano passado, causou revolta uma foto que viralizou nas redes sociais: ela mostrava dezenas de pessoas espremidas em uma fila, esperando até doze horas para tirar uma selfie no topo. Nesse ano também a empreitada rumo ao cume do monte matou onze pessoas. Apesar de o número não ser acima da média, a imagem associada a mórbida estatística mobilizou profissionais do alpinismo, que há anos reclamam do excesso de viajantes inexperientes no trajeto. São esses, afinal, as vítimas mais frequentes da exaustão, a principal causa de óbitos em empreitadas desse tipo. Em agosto do ano passado, o governo nepalês afirmou que endureceria as regras para a escalada, e que elas valeriam a partir de 2021.
O novo coronavírus, ao frear o turismo, estancou a movimentação e, de algum modo, ajudou no controle de acesso de pessoas.
O ministro do turismo do Nepal, Yogesh Bhattarai, admitiu, ainda em agosto, preocupação: “O Everest não pode ser escalado com base em desejos”, disse, ao anunciar as mudanças. De acordo com as regras prometidas, os alpinistas que quiserem encarar a subida do Everest deverão provar que já escalaram outro pico com dificuldade equivalente, enquanto as empresas que oferecem o serviço serão obrigadas a ter ao menos três organizadores experientes em cada expedição. Para evitar que as companhias baixem excessivamente o preço das excursões para compensar a perda de clientes (com queda de receita para o país), os viajantes deverão provar que pagaram ao menos 35 000 dólares pelo trajeto. Tudo mudou com a pandemia, mas a vontade de chegar lá — a 8 848 ou 8 844 metros — não para.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690