Projeto de cientistas e historiadores busca revelar segredos de Leonardo da Vinci
A ideia é usar genética de parentes vivos e vestígios em obras de arte

Leonardo da Vinci (1452-1519) passou o fim da vida em Clos Lucé, na França, a convite do rei Francisco I. O “primeiro pintor, arquiteto e engenheiro do rei”, como era chamado, gozava dos privilégios de convidado de honra e tinha total liberdade para fazer o que bem quisesse. Ao morrer, aos 67 anos, foi enterrado na Igreja de Saint-Florentin, devastada durante a Revolução Francesa e depois completamente demolida no início do século XIX. Ao realizar escavações nas ruínas do Castelo de Amboise, onde ficava a capela, o arqueólogo Arsène Houssaye encontrou um esqueleto parcialmente preservado, com uma pedra gravada e alguns fragmentos de mármore. Acredita-se que essa pedra tivesse as iniciais “L.V.” e “D.V.” ou algo similar, o que o levou a crer que havia encontrado os restos mortais do pintor da Mona Lisa e criador de O Homem Vitruviano.
Apesar da “descoberta” de Houssaye, o esqueleto nunca foi definitivamente provado como sendo de Leonardo. A incerteza histórica permanece, e o túmulo no Castelo de Amboise, agora na Capela de Saint-Hubert, onde os restos repousam até hoje, é considerado um memorial, sem garantias de que fragmentos dele estejam realmente ali. Movido por essa dúvida, um grupo de cientistas e historiadores uniu-se, agora, em torno de um dos projetos mais ambiciosos da genética contemporânea: o Leonardo da Vinci DNA Project, que tem como objetivo reconstruir o perfil genético do gênio renascentista. A iniciativa pretende comparar o DNA de Leonardo com o de parentes vivos e amostras antigas para confirmar a autenticidade de restos mortais atribuídos a ele, além de usar o sequenciamento do genoma para obter um entendimento mais profundo de suas habilidades e saúde.

O projeto, coordenado por Jesse Ausubel, da Universidade Rockefeller, em Nova York, em parceria com a Universidade de Florença e o Instituto J. Craig Venter, nasceu da possibilidade de rastrear o cromossomo Y, transmitido inalterado de pai para filho. Para isso, os historiadores italianos Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato, da Leonardo da Vinci Heritage Association, em Vinci, debruçaram-se sobre documentos históricos, como registros de igrejas e testamentos, por três décadas, para reconstruir a árvore genealógica. Ao fim do processo, identificaram catorze descendentes vivos de Leonardo, todos moradores da Toscana, com idades entre 1 e 85 anos. As ocupações desses indivíduos são prosaicas, incluindo as de escriturário, artesão, funcionário público, piloto e artista. Um dos parentes, Milko di Mario, nascido em 1976, é um recatado funcionário público, apaixonado pela velocidade do motociclismo e por música.
Desses descendentes, seis foram submetidos a testes de DNA. A análise demonstrou que segmentos do cromossomo Y coincidiam entre esses homens, confirmando a continuidade genética da linha masculina de Leonardo por pelo menos quinze gerações. A pesquisa também levou à identificação e escavação de uma tumba na Igreja de Santa Croce, em Vinci, que pode ser o local de sepultamento do avô e de vários meios-irmãos de Leonardo. O trabalho genealógico trouxe ainda informações sobre a família, como a identificação de antigas casas ligadas aos Da Vinci, a história do avô Antonio, um comerciante que viajou entre a Espanha e o Marrocos, e novas evidências de que Caterina, mãe de Leonardo, pode ter sido uma escrava em Florença.

Sem prazo definitivo para conclusão, a investigação avança em etapas, à medida que as análises de DNA antigo confirmam ou descartam hipóteses. O sequenciamento completo do genoma de Leonardo promete, enfim, ajudar a decifrar a base biológica de sua extraordinária acuidade visual, seu canhotismo e outras singularidades. “Ele era um ponto fora da curva também no sentido biológico”, observa Ausubel, coordenador do projeto. O objetivo é definir uma “assinatura” hereditária única que, em tese, poderá ser cotejada com vestígios biológicos — como células de pele ou fios de cabelo — preservados em seus manuscritos e pinturas, oferecendo um critério científico para autenticar a herança material do grande mestre do Renascimento.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963