Rumo a Marte: as missões espaciais que podem mudar o futuro da Terra
Três naves, de três países, estão chegando quase simultaneamente ao planeta vermelho em fevereiro de 2021
Vizinho pouco hospitaleiro, isolado e áspero não deveria ser digno de atenção. No entanto, o que mais faz é justamente isso: atrair os olhares para ele. Desperta a curiosidade porque está perto e, principalmente, porque parece esconder algo importante. Para bater à porta dele, basta dar uma volta pelas redondezas a uma velocidade média de 60 000 quilômetros por hora, percorrendo cerca de 480 milhões de quilômetros em trajetória elíptica. Pronto: seis meses e meio depois, chega-se ao planeta mais parecido com a Terra no imenso condomínio que é o sistema solar. Marte é o mundo a ser estudado porque ele tem respostas guardadas em seu passado que podem iluminar o futuro da espécie humana. Por esse motivo — e talvez por outros menos nobres, como a extração de riquezas minerais —, três naves, de três países, estão chegando quase simultaneamente ao planeta vermelho em fevereiro de 2021, mês e ano que estão prestes a entrar para a história da exploração espacial.
A saga, que alcança seu ápice neste mês, começou há alguns anos, mas teve seu momento mais desafiador em março de 2020, quando a Covid-19 foi alçada à categoria de pandemia, ameaçando travar o programa espacial dos Estados Unidos, da China e dos Emirados Árabes Unidos, nação novata em fabricação de satélites e sondas. O dilema residia em perder uma oportunidade rara: Marte, que em sua órbita em torno do Sol chega a se afastar da Terra mais de 400 milhões de quilômetros, estaria razoavelmente próximo — de 100 milhões a 62 milhões de quilômetros — entre julho e outubro. A fim de aproveitar essa janela de lançamento, prevista para se repetir só no fim de 2022, as agências espaciais mantiveram o cronograma e acionaram seus foguetes em julho.
A sonda Al Amal, dos Emirados Árabes, foi lançada do Japão no dia 19, seguida pela chinesa Tianwen-1, que decolou do centro espacial de Wenchang no dia 22, e pela americana Perseverance, no dia 30. Assim, enquanto o mundo seguia mesmerizado diante da propagação do microscópico e potencialmente mortífero coronavírus, uma caravana de naves partia para o espaço sideral tendo como um dos objetivos justamente encontrar prova de vida microbiana no planeta vermelho. O esforço, entretanto, mesmo que pareça coordenado, é independente. Há um forte laço de cooperação entre o centro espacial Mohammed Bin Rashid, dos Emirados Árabes, e a Nasa (uma vez que universidades americanas ajudaram na montagem da Al Amal), mas tal colaboração não é garantida por parte da China, que mantém detalhes de sua missão em sigilo.
Perseverance, da Nasa, é o mais sofisticado rover (pequeno jipe não tripulado) que a humanidade já concebeu. Equipado com estação meteorológica portátil, espectrômetro e supercâmeras, inclusive de raio-x, ele está programado para descer na cratera Jezero, na região norte do planeta. Conhecida como “cratera do lago”, essa depressão circular de 45 quilômetros de diâmetro provavelmente foi um delta onde desaguava água de dois ou mais rios há 3,5 bilhões de anos, quando Marte — acreditam os cientistas — não era o cenário desolado de hoje. Se existiu algum tipo de microrganismo naquelas águas, o rover conseguirá detectar seus resíduos, mesmo depois de passado tanto tempo. E, mesmo que a análise in loco seja insatisfatória, ele guardará a vácuo dezenas de amostras que poderão ser, futuramente, resgatadas por alguma nave que sobrevoe o planeta e traga o conteúdo para laboratórios mais equipados na Terra. E, falando em voo, a Nasa vai performar um outro espetáculo inédito assim que der ordem de decolagem ao drone que Perseverance leva consigo. Batizado de Ingenuity (o termo em inglês que define talento e criatividade), ele será o primeiro helicóptero marciano.
Antes de realizar tais façanhas, porém, o rover americano terá de fazer jus ao nome (Perseverança) passando pelo que Tom Rivellini, engenheiro-chefe da Nasa e hoje diretor da Apple, define como “sete minutos de tirar o fôlego”. No dia 18, a sonda mergulhará no planeta vermelho a 20 000 quilômetros por hora, momento em que o escudo de calor terá de suportar 1 300 graus ou mais. A atmosfera de Marte, 100 vezes mais fina que a da Terra, é boa para criar resistência no começo, mas péssima para reduzir a velocidade de um veículo de 1 tonelada, que precisará ser freado pelo mais poderoso paraquedas já fabricado. E, como tudo é superlativo nessa missão, um guindaste voador garantirá que ele pouse sem levantar detritos danosos aos instrumentos (veja o quadro). Na Nasa, os técnicos aflitos só terão notícias do rover cerca de doze minutos depois da descida, já que esse é o tempo que o sinal levará para percorrer 210 milhões de quilômetros — distância de Marte à Terra em fins de fevereiro.
Enquanto Perseverance se vira em sete minutos para alcançar a cratera Jezero, a sonda árabe já estará perscrutando o planeta, porém lá do alto. A chegada está prevista para o dia 9 e sua missão é se manter em órbita, estudando eventos atmosféricos e as violentas tempestades de areia que assolam a superfície, buscando descobrir por que a atmosfera continua se deteriorando. Não existe tecnologia hoje que transforme Marte em um mundo habitável para a espécie humana, mas os cientistas dos Emirados Árabes procuram indícios que expliquem por que os vapores de água insistem em escapar para o espaço sideral. Espera-se também que, de alguma forma, Al Amal acompanhe o progresso do colega cibernético americano na superfície.
O ineditismo de fevereiro não estaria completo sem que a espaçonave Tianwen-1 se juntasse ao grupo, o que está previsto para acontecer no dia 10. Mais do que um feito sem precedente para a China, trata-se da prova definitiva de que os Estados Unidos têm um rival à altura também no campo aeroespacial. Pesando cerca de 5 toneladas, com o combustível incluso, Tianwen-1 é composta de três equipamentos: a sonda orbital (orbiter), o dispositivo de pouso (lander) e o rover. Portanto, a exploração acontecerá simultaneamente na superfície e no espaço — ou, em outras palavras, a missão chinesa cumprirá sozinha parte dos objetivos de Perseverance e Al Amal. Não existe, porém, nenhuma chance de os rovers colidirem. O alvo de Tianwen-1 é uma gigantesca bacia de mais de 3 000 quilômetros de diâmetro conhecida como Utopia Planitia, parcialmente explorada pela sonda americana Viking 2 em 1976 e possível depósito de água congelada — hipótese que a China tentará comprovar e, se o fizer, mudará muito do que se sabe do planeta vermelho.
Marte tem metade do diâmetro da Terra e um volume seis vezes menor — é pequeno diante de seus pares, maior apenas que Mercúrio. Ele está a 228 milhões de quilômetros do Sol e leva 687 dias terrestres para completar sua translação. Sua cor avermelhada vem do minério de tom enferrujado que cobre a superfície. Com temperaturas que variam de 140 graus negativos a 30 graus positivos, dependendo da região e época, ele é menos aprazível que os piores desertos quentes e gelados da Terra, uma vez que não tem oxigênio para respirar. Porém, em algum momento, mesmo que há bilhões de anos, ele foi melhor do que isso, e a humanidade precisa saber ao certo o que aconteceu com seu vizinho inóspito. Nosso futuro talvez dependa disso.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724