“Ei-la visível, enfim! Eis a invisível Lua. E os três, através do eflúvio luminoso de alguns segundos, entreviram a misteriosa face oculta do luar, que o olhar humano via pela primeira vez.” A descrição, tão eletrizante quanto extraordinária, é do escritor francês Julio Verne e aparece no clássico Da Terra à Lua, romance lançado em 1865 — quando uma viagem até o satélite, como se sabe, só podia ser concebida no fantasioso plano da ficção científica.
Na quinta-feira 27, o relato de Verne se afastou um pouco mais de sua condição literária para se consolidar no terreno da ciência (o que não diminui em nada os méritos do autor; muito pelo contrário). Um artigo publicado na revista científica americana Science Advance trouxe à tona detalhes inéditos da parte não visível da Lua para quem a observa daqui — ocultamento que se deve à sincronia gravitacional que anula o movimento de rotação do satélite. No estudo sobre a misteriosa região lunar, fotografada pela primeira vez em 1959 por cientistas russos, revela-se o que está por baixo da fina e acinzentada poeira que compõe o solo do astro — o que deverá auxiliar em um conhecimento maior da própria Terra e do sistema solar. A proeza se deve à sonda chinesa Chang’e-4, o primeiro dispositivo tecnológico que conseguiu pousar na famosa face oculta da Lua, em janeiro do ano passado.
Chegar àquela área lunar, sublinhe-se, é algo de extrema dificuldade, em razão das limitações por ali do alcance dos sinais de rádio, que precisam contornar o astro para que seja possível enviar comandos de navegação até a sonda. Superado esse fator, em fevereiro de 2019, foi possível para a equipe chinesa liberar o pequeno robô Yutu-2 na cratera Aitken, de 2 500 quilômetros de diâmetro. O tempo de quatro semanas decorrido entre a aterrissagem do dispositivo e o início do trabalho do robô pode ser explicado, em primeiro lugar, pelo fato de que um dia na Lua dura catorze dias terrestres. Durante as outras duas semanas, dominadas pela noite, a temperatura caía a 170 graus negativos — impossibilitando o funcionamento do veículo, que opera por meio de painéis solares.
Os dados recolhidos pelo Yutu-2 foram obtidos por um conjunto de radares de altíssima precisão. Pode-se dividir o subsolo da Lua em três linhas de detritos. A primeira faixa de sedimentos tem 12 metros e é composta de regolito lunar, formação de partículas de poeira finas provenientes de colisões com pequenos meteoritos, em diferentes eras, e da degradação de rochas em virtude da radiação solar. A segunda camada, que vai até 24 metros de profundidade, já apresenta rochas maiores e mais maciças, provavelmente resquícios de impactos que datam aproximadamente do tempo dos dinossauros (230 milhões de anos). Depois disso, até os 40 metros finais, estende-se a última camada, formada por uma mistura de materiais brutos de meteoros, que caíram no satélite há cerca de 3,6 bilhões de anos. Tais colisões, anteriores à existência da vida terráquea, ratificam uma antiga teoria científica: sem o escudo da face oculta da Lua, talvez não estivéssemos aqui.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677