Telescópio chileno mapeará o céu para tentar explicar grandes mistérios do espaço
A cada quatro dias, todo o céu observável será inteiramente apurado, o que, no final, criará uma imagem detalhada do cosmos
Em 1998, dois grupos diferentes de cientistas fizeram uma descoberta fascinante: o universo não apenas estava se expandindo, como já se sabia, mas fazia isso com o pé afundado no acelerador. Era o que as evidências mostravam. Contudo, parecia difícil explicar a mecânica do fenômeno. Depois do Big Bang, era lógico que haveria expansão, mas ela deveria reduzir a toada ao longo do tempo, à medida que se equilibrava em razão da força da gravidade. Só poderia haver, então, uma explicação possível: algo estaria impulsionando a dilatação frenética. É o que se convencionou chamar, a partir de então, de energia escura, tema de investigação de um Prêmio Nobel, em 2011, concedido aos físicos americanos Saul Perlmutter, Brian P. Schmidt e Adam G. Riess.
A elucidação do mistério entusiasmou cientistas ao redor do mundo e impulsionou o desenvolvimento de ferramentas astronômicas poderosas. Uma delas acaba de ser anunciada com estardalhaço. Chamada de Observatório Vera C. Rubin, no norte do Chile, em homenagem a uma astrônoma americana, começou a ser projetado em 1990, para estudar a matéria escura, elemento misterioso descoberto décadas antes. Seu potencial, no entanto, era amplo e poderia facilmente ser adaptado para a nova rodada de investigação. O objetivo era ousado: criar um telescópio com um espelho de 8,4 metros de diâmetro, apto a escanear o céu do Hemisfério Sul diariamente por dez anos. “É um projeto revolucionário”, diz Luiz Nicolaci da Costa, diretor do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA), coordenador da participação brasileira no projeto.
Tradicionalmente, os telescópios são desenhados para uma família de projetos. Esse, porém, será dedicado a uma única tarefa. A cada quatro dias, todo o céu observável será inteiramente apurado, o que, no final, criará uma imagem detalhada do cosmos, em uma sinfonia de cores captadas do espaço. “A ideia é que ele possa detectar tudo que for variável ou móvel no céu”, disse a VEJA o astrofísico Roberto da Costa, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP). Estima-se que serão descobertos ao menos 17 bilhões de estrelas e 20 bilhões de galáxias, além de objetos difíceis de serem observados com os instrumentos tradicionais. Imagina-se ser possível descobrir, por exemplo, asteroides de brilho fraco e supernovas — resultado de explosões estelares — muito distantes. Some-se, é claro, a capacidade de esmiuçar complicadas dinâmicas celestes, o que autorizará o melhor entendimento das matérias e energias ainda desconhecidas.
Há, no entanto, um desafio. O telescópio tem a maior câmera digital do mundo, capaz de gerar cerca de 200 000 imagens por ano. Analisar toda essa informação será tarefa complexa e, por isso, os dados não ficarão centralizados no Chile, nem nos Estados Unidos, que financiaram o projeto. Ao todo, haverá cerca de quinze centros de dados ao redor do mundo, onde as informações ficarão disponíveis para os pesquisadores. O Brasil contará com um desses bancos, no LIneA, uma associação científica no Rio de Janeiro que já tem experiência nesse tipo de pesquisa. O problema: é preciso aprimoramento tecnológico para cumprir os requisitos do programa. Como contrapartida do investimento, os 120 pesquisadores brasileiros terão acesso aos dados para fazer pesquisa de ponta. “Cerca de 80% serão jovens pesquisadores, estudantes que terão a oportunidade de trabalhar com as principais lideranças mundiais”, diz Nicolaci da Costa, do LIneA.
Já completamente montado e com início do funcionamento previsto para os próximos meses, o Vera C. Rubin é um grande passo para o avanço da astrofísica. Ele dá as mãos a um grupo de outros instrumentos que também têm gerado resultados surpreendentes e merecem celebração. O Telescópio Espacial James Webb quebra recordes na observação de galáxias distantes. O LUX-ZEPLIN, maior detector de matéria escura do mundo, chega mais perto de elucidar a natureza desse elemento. Os cientistas — e o comum dos mortais — aguardam ansiosos pelas próximas novidades. Programado para iniciar suas atividades ainda na próxima década, o Telescópio Europeu Extremamente Grande, com 39 metros de diâmetro, será o mais poderoso instrumento de observação óptica inventado até hoje. Olhar o céu, paixão de crianças, é também brincadeira de gente grande.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908