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Temperaturas recordes reforçam urgência de encarar mudanças climáticas

Especialistas alertam para o fato de que, por sua posição geográfica e abundância de recursos, o Brasil deveria liderar o debate, mas isso não vem ocorrendo

Por Luiz Felipe Castro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h19 - Publicado em 3 abr 2022, 08h00
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  • O secretário-geral das Nações Unidas (ONU), o português António Guterres, não usou meias-palavras durante a COP26, a conferência climática realizada no fim do ano passado em Glasgow, na Escócia. No evento, ele disse que a humanidade está “caminhando para uma catástrofe climática” e “cavando a própria cova”. Líderes mundiais, pesquisadores e ativistas ambientais denunciaram de forma recorrente, ao longo das últimas décadas, os perigos das mudanças climáticas causadas pela emissão de gases de efeito estufa, pelo efeito colateral da queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento. Eles, contudo, nem sempre foram ouvidos e, muitas vezes, foram até ridicularizados. O negacionismo e os interesses econômicos seguem travando a pauta ambiental, mas a natureza e a ciência têm dado sinais cada vez mais contundentes sobre a triste sina do planeta.

    Em março, ondas de calor incomuns atingiram tanto o Ártico, no Polo Norte, quanto a Antártica, o chamado continente gelado, no Polo Sul. A estação Hopen, na Noruega, na região ártica, chegou a marcar temperaturas cerca de 30 graus acima do normal. Enquanto isso, a estação Concordia, base de pesquisa na Antártica, marcou 11,5 graus negativos, quando a média na região, tida como a mais gelada da Terra, é de 50 graus negativos. A extraordinária escalada dos termômetros chamou ainda mais a atenção por ocorrer na mesma época do ano, mas em estações opostas.

    arte degelo polos

    No ano passado, outros eventos causaram espanto e um rastro de mortes, sobretudo de idosos, os mais vulneráveis às alterações bruscas de temperatura. Em julho, o sudoeste do Canadá e o noroeste dos Estados Unidos experimentaram uma “onda de calor excepcional e perigosa”, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), beirando incríveis 50 graus. Um mês depois, o mesmo ocorreu em partes do Mediterrâneo, especialmente em Siracusa, na ilha italiana da Sicília, onde foi estabelecido o recorde de temperatura já registrada na Europa: 48,8 graus. Os chamados anticiclones de bloqueio, que impedem a chegada de ar frio, e o fenômeno La Niña, que afeta as correntes atmosféricas, foram apontados como explicações mais prováveis. Alguns especialistas relutaram em cravar uma relação direta entre os casos com o chamado aquecimento global e ressaltaram que eventos extremos sempre ocorreram, muitas vezes de forma aleatória e isolada. No entanto, já é consenso que as mudanças climáticas causadas pelo descuido humano podem aumentar não só a probabilidade como a frequência e a trágica intensidade desses fenômenos.

    O termo “aquecimento global”, forma como antes eram resumidos os perigos ambientais, caiu em desuso, já que diz respeito a apenas um dos efeitos das mudanças climáticas (este, sim, o termo mais amplo) em escala global. Para além da temperatura média da Terra — que, segundo o IPCC, o painel ambiental da ONU, subiu entre 1,1 e 1,2 grau acima dos níveis pré-­industriais de 1850 —, há outras questões de risco, como alterações dos regimes de chuva, intensificação de eventos extremos, sejam de seca, umidade, calor ou frio, e o enfraquecimento da circulação oceânica.

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    INFERNAL - Queimadas na Sibéria, em 2021: o planeta está vulnerável -
    INFERNAL – Queimadas na Sibéria, em 2021: o planeta está vulnerável – (Ivan Nikiforov/AP/.)

    O degelo nas regiões polares é uma preocupação antiga, mas descobertas feitas recentemente por um pesquisador brasileiro tiveram repercussão internacional. David Marcolino Nielsen liderou um estudo da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, publicado em fevereiro pela revista Nature Climate Change, que apontou os riscos do aumento da erosão da região costeira do Ártico. Os efeitos do descongelamento do permafrost, como é chamado o solo congelado das regiões polares, podem ser catastróficos, pois a degradação da matéria orgânica ali contida pode liberar enorme quantidade CO2 e metano, aumentando a temperatura média da Terra.

    arte degelo polos

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    Nielsen explica que, à medida que a temperatura sobe, a taxa de erosão aumenta em metros e também em milhões de toneladas de carbono liberadas. Com base em uma inovadora combinação de modelos computacionais, ele e sua equipe concluíram que, caso as emissões de gases de efeito estufa permaneçam sem controle, a taxa de erosão poderá dobrar até o fim do século. “O efeito e o destino do material orgânico e o seu papel no clima ainda são altamente incertos, mas é fato que, quanto mais conseguirmos limitar a magnitude das mudanças globais, menor será o prejuízo para a sociedade”, disse Nielsen a VEJA.

    Eis o xis da questão: os efeitos do degelo podem até ser benéficos, caso limitados a níveis mínimos, a depender do compromisso da humanidade com a causa. Em cenários de mudanças climáticas mais acentuadas, o permafrost poderá se converter em uma fonte de gases de efeito estufa, em consequência da degradação da matéria orgânica que descongelaria e ficaria disponível para a decomposição. Por outro lado, em cenários de desenvolvimento sustentável, o permafrost pode se tornar em uma região de captura de carbono atmosférico. “O possível aquecimento leve da superfície e o aumento da concentração de CO2 atmosférico tornariam a região gelada mais fértil, favorecendo o crescimento de vegetação”, diz Nielsen. Para isso, é preciso seguir a velha receita: preservar áreas verdes e substituir combustíveis fósseis e não renováveis, como petróleo, gás natural e carvão, por fontes renováveis, como solar, eólica e biocombustíveis.

    RISCO IMEDIATO - Pinguins em marcha: as colônias estão cada vez menores -
    RISCO IMEDIATO – Pinguins em marcha: as colônias estão cada vez menores – (Wolfgang Kaehler/LightRocket/Getty Images)
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    Engana-se quem pensa que os fenômenos climáticos nos polos não interferem em todo o planeta. Com o aumento do nível dos oceanos e a incidência de casos extremos, ilhas e regiões costeiras poderão desaparecer. “A maioria das nações foi colonizada da costa para o interior, especialmente os países em desenvolvimento, como o Brasil. Estamos vulneráveis”, aponta Tércio Ambrizzi, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas da IAG/USP. O país sofre com a falta de planejamento e prevenção a eventos como as chuvas torrenciais que no verão acometem a Região Sudeste e causam milhares de mortes e deixam desabrigados todos os anos. Por outro lado, fenômenos de estiagem colocam em risco o abastecimento de água e a geração de energia hidrelétrica.

    Os especialistas alertam para o fato de que, por sua posição geográfica e abundância de recursos, o Brasil deveria liderar o debate climático, mas isso não vem ocorrendo. “Diversas regiões abrem a possibilidade de maior geração de energia eólica e fotovoltaica. São setores da economia que podem ser mais bem direcionados”, diz Ambrizzi. Há consenso de que o governo Bolsonaro falhou na questão ambiental. Para David Nielsen, falta ao Brasil investimento em instituições independentes que poderiam investigar melhor o tema: “Nos últimos anos, órgãos essenciais sofreram cortes de verbas e foram ignorados pelos tomadores de decisão”. Tércio Ambrizzi diz que é preciso conciliar necessidades sustentáveis com econômicas: “O argumento sempre é financeiro, mas é uma falácia dizer que a floresta atrapalha a agricultura. Ambas podem conviver”. Não há mais como negar a gravidade das mudanças climáticas. Os avanços tecnológicos, como o processo de eletrificação de automóveis, e a maior conscientização abrem novas vias de esperança. O esforço, porém, tem de ser coletivo — de norte a sul.

    Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783

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