Mauricio Macri fez uma grande jogada diplomática um dia depois de vencer as eleições presidenciais na Argentina ao dizer que, se Nicolás Maduro não aceitasse os resultados das eleições parlamentares na Venezuela, realizadas no último dia 6, recorreria à cláusula democrática do Mercosul para suspender o país do bloco. Muito se discutiu se a tal cláusula poderia ser aplicada nesse caso, mas isso é o menos importante. O fato é que, como a oposição venezuelana venceu o pleito e Maduro reconheceu a derrota, Macri passou a imagem de um líder forte que não assiste passivamente enquanto protoditadores da região agem impunemente. (Ele nem precisou correr o risco de ter seu plano recusado pelos outros países do Mercosul, porque desistiu de cumprir a ameaça assim que Maduro reconheceu a derrota.) O que poucos sabem é que, se parecia que Macri estava partindo com um grande porrete para cima de Maduro, na realidade a paulada não ia doer nada — pelo menos não na população venezuelana, que é o que importa.
Não foi a ameaça de Macri o que levou Maduro a desistir de passar por cima da vontade popular, e sim a perda do apoio das forças armadas (como mostraram esta semana reportagens dos jornais El Nuevo Herald, dos Estados Unidos, e ABC, da Espanha) e a incrível mobilização da população e da oposição venezuelana para impedir as fraudes nas urnas (como mostrei nesta reportagem). A saída do bloco teria, claro, algum impacto diplomático e simbólico, mas de resto o Mercosul é irrelevante para a combalida economia venezuelana. Não apenas porque o país, três anos depois de aderir oficialmente, ainda não adotou as medidas necessárias para se integrar ao Mercosul, mas também porque o setor privado local não vê vantagens em fazer parte do mercado regional. Afinal, a capacidade produtiva do país, que já não era das maiores, foi destroçada pelas políticas populistas de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Hoje, a Venezuela importa mais de 90% dos bens que consome e praticamente só exporta petróleo. Essa é a tônica de duas entrevistas que fiz esta semana em Caracas, a primeira com o representante de uma entidade empresarial e a segunda com um respeitado economista venezuelano.
Victor Maldonado, diretor executivo da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Caracas:
Que importância tem o Mercosul para a Venezuela? O Mercosul, para nós, é apenas um fórum político, sem relevância econômica. Outros presidentes aparecem nas reuniões com seus empresários, mas o presidente Hugo Chávez aparecia sozinho, com seus assessores. Nicolás Maduro também. Até o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, que nem tem mandato para negociar em nome do governo, fez visitas de negócios ao Brasil, onde fechou grandes compras para a Venezuela.
Espere um pouco: as empresas privadas da Venezuela nunca foram consultadas sobre questões referentes ao Mercosul? Nunca fomos chamados para isso, nunca fomos ouvidos. E não estou falando apenas de participação de entidades empresariais, como a nossa. Chávez e Maduro podiam pelo menos ter seguido o exemplo de Lula, que desembarcava em outros países com dezenas de empresários a tiracolo. O último encontro regional de que me recordo em que houve a participação de empresários venezuelanos foi em um Fórum Empresarial do Mercosul que se realizou no Chile. Nosso governo não convidou nenhuma de nossas empresas. Alguns empresários venezuelanos ligados à Fedecámaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela) conseguiram acesso limitado ao evento, mas apenas porque receberam um convite especial dos empresários chilenos. Nós nunca fomos convocados, de nenhuma maneira, para participar das negociações do bloco. Isso é um descalabro, porque qualquer forma de mercado comum deveria ter instâncias de negociação, que nos foram negadas, para harmonizar as economias e tratar de fazer com que sejam complementares.
Voltando, então, ao significado do Mercosul para o país. O fato é que, na Venezuela, o Estado se transformou em um empresário – um péssimo empresário, ineficiente e corrupto, e que, além de tudo, aonde quer quer vai sai corrompendo as pessoas e as instituições. Vai à Argentina e corrompe, vai ao Brasil e corrompe. A Venezuela entrou no Mercosul por razões políticas. A única razão econômica que nosso governo ofereceu foi entregar nosso petróleo, ou oferecer um câmbio de divisas muito conveniente para os outros, mas péssimo para o nosso país. Os negócios regionais devem ser, sobretudo, negócios entre empresas privadas. Os presidentes deveriam ter muito pouco a dizer sobre isso. Os governos, em nome de seus Estados, deveriam assinar acordos e protocolos, claro, mas para estabelecer o livre trânsito de pessoas e o livre fluxo de mercadorias, garantir espaço aéreo e dar sentido e racionalidade às capacidades dos países. Os mercados comuns são para que todos ganhem, e não para que uns ganhem mais que outros. O Brasil é muito grande. Em termos industriais, não dá nem para comparar com a Venezuela. Todos sabem que o Brasil é uma fortaleza econômica. Não se abre de forma alguma.
O Mercosul não serviria aos interesses da Venezuela nem em uma situação ideal, com outro governo, outra situação econômica e após uma recuperação gradual da indústria local? Há muito por fazer. O problema do Mercosul é que se trata de uma criação muito política, que acreditava ser possível estabelecer um mercado fictício. Os mercados regionais não podem ser decretados com uma canetada. Também não é possível um mercado regional em que o bolívar, a moeda venezuelana, não vale nada, como acontece atualmente. O Mercosul só fará sentido quando a América Latina deixar para trás a era dos Estados fortes para entrar na era das sociedades e dos mercados fortes.
Asdrúbal Oliveros, economista e diretor da Ecoanalítica, consultoria com sede em Caracas:
O Mercosul é importante para a Venezuela? A discussão na Venezuela é outra. Ao contrário do que acontece aqui, a América Latina neste momento não discute programas de estabilização, de ajuste. Isso já é uma etapa superada. O problema dos principais países da América Latina, hoje, é competitividade, acordos comerciais, redução de pobreza e da desigualdade e investimento em infraestrutura. Desse ponto de vista, a Venezuela está 20 anos atrasada em comparação ao que está acontecendo na Colômbia, no Peru, no Chile, no México e no Brasil. O importante nesta etapa é conseguir a estabilidade econômica da Venezuela. Nós só vamos ver vantagem no Mercosul quando tivermos estabilidade, uma política cambiária competitiva e a inflação e o déficit fiscal estiverem sob controle. Ou seja, quando tivermos aquilo que os economistas chamam de um ambiente macroeconômico saudável e estável. Ainda há dúvidas se vamos conseguir isso no curto prazo. Se conseguirmos, aí sim a Venezuela começará a debater a importância que o Mercosul pode ter para nós.
Então foi uma decisão equivocada de Chávez entrar no Mercosul? Até agora, sempre fui um crítico da entrada da Venezuela no Mercosul. Sempre defendi a tese de que a negociação deveria ter sido entre a Comunidade Andina (CAN) e o Mercosul. Mas Chávez estava decidido, e preferiu desmantelar a CAN. Com isso, estamos mais vulneráveis, porque nossa economia é quase totalmente dependente do petróleo e tem um grau de industrialização muito baixo em comparação com os outros países da América Latina. Por causa da renda do petróleo, temos um PIB per capita mais alto do que o Uruguai e o Paraguai. Mas em termos de indústria e agricultura perdemos até para esses países. Quando a situação da economia venezuelana estiver resolvida, a Venezuela e suas empresas talvez possam se beneficiar de alguma forma do Mercosul. Com certeza seremos um parceiro importante para os outros países. Uma economia como a nossa é um mercado interessante, porque nossos níveis de consumo costumavam ser elevados – claro que, com esta crise, estão por ora destroçados – e vão continuar sendo atraentes para as empresas do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai.
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