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O pódio da inclusão

A vitória da argelina Imane Khelif no boxe – acusada de ser um homem pelos cartolas russos – pôs a nocaute o preconceito e a falta de informação

Por Richard Callis, de Paris
Atualizado em 12 ago 2024, 16h07 - Publicado em 9 ago 2024, 21h15

A boxeadora argelina Imane Khelif disputou uma Olimpíada paralela – contra o preconceito e os lugares-comuns. Depois de uma semana encurralada no ringue de sua própria existência, ela nocauteou seus detratores. Aos gritos de “Imane, Imane!”, ecoado pelos torcedores de origem argelina que lotavam a arena de boxe instalada no coração de Roland Garros, ela venceu com facilidade a chinesa Yang Liu e levou o ouro na categoria de até 66 quilos. Ao som de um clássico do rap francês, Tonton du Bled, que bebe da infância dos filhos da África do Norte, o Magrebe, Khelif exultava de alegria em uma cena bonita, o melhor dos desfechos de uma temporada agressiva: fez uma selfie com as adversárias no pódio, em registro de inclusão.

Mas, afinal, o que houve com a moça de 25 anos? Aos 46 segundos de sua luta inaugural, contra a italiana Angela Carini, deu-se uma cena insólita. Carini abandonou o ringue depois de levar um soco que considerou forte em demasia. Perdeu o combate, é claro. E não demorou para que explodisse nas redes sociais uma antiga acusação contra Khelif, a de ter hormônios masculinos muito além do imaginado para uma mulher. Os estúpidos babaram de ódio. Lembraram a exclusão da argelina – e de uma outra pugilista que também chegou à final olímpica, Lin Yu Ting, de Taiwan – de torneios mundiais no ano passado, por não atender a “critérios de elegibilidade”. O problema: quem as excluiu foi a Associação Internacional de Boxe (IBA, na sigla em inglês), liderada por um corrupto atávico, o russo Uma Kremlev. O Comitê Olímpico Internacional (COI) que, vá lá, não é feito somente de santos, não reconhece a entidade. A IBA alegou ter feitos testes com as esportistas e por isso as expulsou. Em Paris, os dirigentes da Associação convidaram os jornalistas para uma coletiva de imprensa. Pretendiam iluminar o problema, provar que Khelif e Ting não são mulheres, aventando inclusive que teriam usado o tratamento hormonal como forma de doping. Mas, como assim, os russos condenando o doping? O COI desdenhou de todas as acusações, por simplesmente não haver informações críveis. As duas atletas são mulheres, simples assim. Certamente têm alguma disfunção hormonal, mas apartá-las por isso seria desonesto. “Minha filha é uma menininha que gosta de boxe desde os 6 anos de idade”, disse o pai, Omar Khelif. Seria o suficiente para encerrar a conversa, mas não. Há quem insista em apontar uma condição da lutadora – ela é um raro caso de pessoa “intersexo” – como crime e contrafação. Não é.

OS PALIPTES DE GIORGIA MELONI E DONALD TRUMP

Mike McAtee, executivo da federação de boxe dos Estados Unidos ao longo de três Olimpíadas, disse nunca ter existido dados reais que comprovassem a prevalência de Khelif e Ting por terem níveis altos de testosterona. A estatística comprova a informação: Khelif perdeu nove lutas na carreira e apenas cinco de suas 37 vitórias foram por nocaute. “O barulho foi alimentado pela rivalidade entre a IBA e o COI, com evidente interesse de prejudicar o torneio de boxe da Olimpíada”, disse McAtee. Ainda que ele também faça cara feira para tudo o que vem da Rússia, tem argumentos muito bons.

Os suspeitos de sempre deram seus palpites. A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, lamentou o “combate desigual”. O.k., ela é italiana, e vai aí um pequeno desconto. Donald Trump praguejou nas redes sociais para anunciar que, no futuro, “excluirá os homens das competições de mulheres”.

O CASO DE EDINANCI SILVA

Um olhar histórico ajuda a entender a celeuma, e por que uma questão de gênero virou guerra ancorada na transfobia – e convém reafirmar que o calor da discussão não tem nada a ver com a participação ou não de atletas transgêneros em Olimpíadas.  É apenas o grito de quem sai dizendo que Khelif e Ting têm jeito de homens. O caso mais conhecido foi o da sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica dos 800 metros em 2012 e 2016, que tem hiperandrogenismo, disfunção caracterizada por altos níveis de testosterona. Ela sempre enfrentou as críticas e a Justiça, ora impedida de correr, ora autorizada a fazê-lo. Em 2023, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) entendeu que Semenya sofreu discriminação ao ser impedida de participar de competições femininas por se recusar a passar por um tratamento para reduzir seu nível de testosterona. O caso da sul-africana ilustra o que muita gente já sabe: mesmo em níveis extremamente minoritários, existem pessoas que escapam às caracterizações predominantes do que é homem e do que é mulher.

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No Brasil, a judoca Edinanci Silva virou celebridade por ter sido jogada em um triturador de imagem semelhante. Antes de sua participação nos Jogos de Atlanta, em 1996, ela passou por um procedimento cirúrgico para retirada de testículos internos e depois foi forçada a se submeter a frequentes testes de suas características sexuais. A testosterona esteve sempre alta – mas ela sempre foi mulher.

Considerar normais os ataques a Khelif e Ting pode vir a levar, um dia, que se vetem as mulheres muito altas, por terem vantagem contra suas concorrentes. O ouro de Khelif – e, mais do que o ouro, a confraternização de adversárias – é uma bela imagem contra a obtusidade.

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