Muita gente está em pânico com dois monstros inusitados. Tratam-se de artigos. No caso, os artigos 11 e 13 (renomeados, depois de muito vaivém, de 15 e 17) da Diretiva de Direitos Autorais da União Europeia. Crianças, adolescentes, adultos, já estão ouvindo tanto a alcunha do Artigo 13 que o tal deve estar tão famoso quanto a malfadada Momo. Mas do que se trata tudo isso?
Primeiro, a notícia. Ontem foi aprovado pela União Europeia a Diretiva de Direitos Autorais – que, num mundo globalizado, conectado via cabos e satélites, acaba por afetar todos os países, todos os que acessam a web, inclusive aqui no Brasil. É uma lei que visa regular o uso de filmes, vídeos, material jornalístico etc. na internet. Particularmente, em grandes sites, como o YouTube, o Google, o Facebook, o Twitter. Para valer, ainda deve passar pelo Conselho Europeu, no início de abril (o que provavelmente ocorrerá).
O que causou fuzuê foram dois artigos. Falemos, antes, do 11 (agora 15). Ele exige que agregadores de notícias, como o Google News, paguem pelo uso comercial de sites de terceiros. Para compreender: se a lei fosse no Brasil, o Google teria de arcar com direitos autorais caso quisesse compartilhar em sua plataforma uma notícia de veja.com.
Até aí, justíssimo. O Google é uma empresa multibilionária, que sempre figura entre as mais valiosas do planeta, e conta com 100 mil funcionários. Por que seria cabível que essa gigante que move trilhões de dólares se aproveitasse – como ocorre hoje – do trabalho de outros, de mídias de bem menor envergadura econômica, para faturar ainda mais? Logo, que compartilhe os lucros.
O problema maior está é em como esse artigo poderá ser interpretado de país para país. E, não se engane, repito: em um mundo totalmente conectado, a lei acaba por impactar, direta e indiretamente, a todos.
Há brechas para que organizações menores – leia: qualquer empresa – que compartilhem notícias em seus perfis nas redes sociais também tenham de arcar com os direitos autorais. Na prática, se transporto para a realidade de carne e osso, seria como se um pequeno empresário que exibisse uma notícia aos funcionários fosse obrigado a pagar por isso (além da assinatura que teria feito da revista, do jornal, da fonte de informação).
Alguns acham que a medida pode conter as fake news, valorizando o jornalismo profissional. Mas é o contrário.
Nesse caso, pode-se inibir a disseminação de boas reportagens, por exemplo, do francês Le Monde. Enquanto se promoveria que o mesmo empresário preferisse simplesmente repassar algo duvidoso que recebeu no WhatsApp – mas sem ser processado por tal (isso, ao menos na Europa).
Outro ponto. Destaca-se no artigo que seria permitido o compartilhamento da notícia quando a intenção for “legitimamente privada e não-comercial, por usuários individuais (leia: pessoas, não empresas)”. Mais uma vez se abre à interpretação.
Um “influenciador” milionário que lucra com anúncios em seus Twitter, por exemplo, seria considerado um “indivíduo” ou uma “empresa”? A lei pode ser decifrada de ambas as formas.
Vamos, agora, conversar sobre o artigo 13, ainda mais polêmico. Ele versa que “serviços de compartilhamento online (…) devem assegurar que trabalhos de uso não autorizado (…) não sejam disponibilizados em seus serviços”. Noutras palavras, se até agora o YouTube, o Facebook e cia. se esquivavam de processos de direitos autorais, dizendo não ser responsáveis pelo o que as pessoas publicam nas plataformas… agora isso não colará mais.
Esses sites passam, dessa forma, a serem judicialmente culpados por ferirem direitos autorais. Na Europa, ao menos.
Novamente, tem um lado justo. No YouTube, por exemplo, é facílimo encontrar filmes e séries piratas. No Google, bastam uns cliques para ter acesso ilegal (e gratuito) ao texto completo de livros. Na prática, essas plataformas promovem o furto do trabalho de artistas dos mais variados. E faturam demais em cima disso.
Então, é cabível exigir medidas de mitigação e impor punições. Para, assim, acabar com o assalto aos direitos autorais.
Na prática, porém, isso tudo não funciona, dentro da lógica online. Só daria certo é no mundo dos anos 1980.
YouTube, Facebook e companhia dificilmente vão conseguir (ou querer) se empenhar para diferenciar o que seria o uso indevido de direitos autorais (piratear um filme, por exemplo) e o que seria uma paródia de um conteúdo, uma crítica de um filme etc. Há o risco de essas empresas – que obviamente se opõem à regulação – sigam um caminho fácil. Para evitar risco, podem programar algoritmos para impedir que se publique nas plataformas quaisquer trechos de filmes, séries, livros, trailers, clipes musicais e por aí vai. Assim, se um youtuber comediante quiser “zoar” uma música, sei lá, de Justin Bieber… não mais poderia fazer.
O perigo vai além. A lei ainda abre portas para ser usada para conter o uso de qualquer material autoral. Como ficariam, por exemplo, os memes? Estes se baseiam justamente em tirar sarro de estrelas do cinema, de notícias e tais.
Enfim, já deve saber do que se tratam os memes. No limite, a depender de como se interpreta a lei, o fenômeno viral estaria em risco. Em especial se um gigante como o Google não se esforçar (leia: gastar $$$ com funcionários e desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas) para separar o joio do trigo.
Além disso tudo, há um outro elemento que deve ser considerado no cenário. Todos conhecem Google, YouTube, Facebook, Twitter. Portanto, é fácil fiscalizá-los.
Se neles ficar totalmente proibido tudo que foi apontado acima (como os memes), isso quer dizer que as práticas acabarão? Claro que não.
Os políticos e legisladores europeus fãs dos artigos 11 e 13 parecem ter parado nos tempos analógicos. Quando era só dizer não e ponto.
Hoje, se você diz não a um usuário do YouTube, o que ele faz? Vai replicar memes na deep web, em fóruns menores, via meios nada fáceis de serem fiscalizados. Nisso, o risco é retornar umas décadas, para a era pré-iTunes, pré-YouTube. Para quando o popular era o Napster e aqueles programas de compartilhamento de arquivos piratas. Se isso ocorrer, no fim a medida da União Europeia acabaria é por incentivar o crime online.
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Resumo: a lei pode ser boa, pode ser ruim, dependendo da interpretação futura da mesma e de como será aplicada. O problema maior: ela foi é muito mal redigida, abrindo brechas demais, e pouco considerou que visa regular não a costumeira realidade tangível, mas o caos digital.
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