Charlie Brooker, o criador de Black Mirror, é hoje (e certamente) o mais popular escritor de ficção científica. Mesmo que muitos de seus fãs nem saibam seu nome. Indo além, já se pode colocá-lo em pé de igualdade a nomes como Philip K. Dick (1928-1982) e Isaac Asimov (1920-1992), apesar de ele ainda não ser, digamos, um Júlio Verne (1828-1905). Queria eu ter metade da habilidade de Brooker para tratar do tema. Porém, ele derrapou, vacilou, feio, na última temporada de Black Mirror.
Tentarei evitar ao máximo os spoilers. Mas vale o aviso de que esse texto leva em conta que o leitor está minimamente por dentro do show.
São muitas as razões para a quarta parte da antologia ter fracassado. A repetição de fórmulas é uma delas. As histórias cansam por serem, na 4ª temporada, sempre sobre um conflito direto entre um protagonista (seja uma filha revoltada – em duas situações –, uma assassina em série, ou uma sobrevivente de um mundo apocalíptico) e um antagonista (seja uma mãe, o dono de um museu diferentão, uma investigadora de seguros ou um cachorro movido a IA). Os contos também abusam em recorrer aos mesmos tipos de tecnologias futuristas que se destacavam nos anteriores, ou mesmo ressaltadas nos outros da mesmíssima temporada. A possibilidade de ver pelo ponto de vista de outra pessoa (seja resgatando suas memórias, introduzindo a consciência alheia no próprio cérebro ou por meio de avatares num mundo virtual) é uma obsessão de Brooke. Ainda é difícil dar credibilidade às histórias diante de falhas grotescas de roteiro – não convencem, em nada, os diálogos de mãe e filha em Arkangel (e que final clichê pro episódio!), ou as reações da protagonista de Crocodilo.
No entanto, nesta coluna, vou me esforçar para não recorrer a essas críticas. O foco será em como se trataram as inovações, distópicas ou utópicas, e principalmente como nós, humanos, nos relacionamos com elas. Essa foi a maior falha do novo Black Mirror.
Nas temporadas anteriores – cheias de altos, com alguns pontos médios, e pouquíssimos baixos –, a tecnologia era como um personagem a mais na trama ou um fator disruptivo que fazia com que comportamentos surreais se transformassem em usuais, esperados, ou mesmo rotineiros. No incrível Queda Livre, o primeiro da 3ª temporada, as reações dos personagens de carne e osso a um app (este, praticamente o protagonista) pelo qual se avaliam os outros são em muito, demasiadamente, humanas. Por isso, tão críveis. A história de Manda Quem Pode (3º da 3ª) poderia facilmente se passar no mundo em que vivemos. San Junipero (4º da 3ª) extrapola a ideia de realidade virtual, de forma pouquíssimo provável, mas extremamente convincente, para dar sentido a um romance tocante, delicado. Odiados pela Nação (último da 3ª) leva a outro patamar a discussão em torno dos males consequentes das redes sociais, da era dos haters e trols.
Voltemos mais. Recorda-se de Natal (último da 2ª), levado pelo ótimo Jon Hamm, de Mad Men? Lá tem muitas das ideias reaproveitadas na nova temporada. A de poder ver pela perspectiva de outrem, toda a discussão em torna da invasão de privacidade (a ideia de “bloquear” quem não se gosta na vida real é um baita ás na manga de Brooker), a imersão em mundos de realidade virtual, a transferência de consciência para uma inteligência artificial etc. Mas todos esses avanços servem para compor um cenário maior, plausível, no qual a tecnologia se transforma em mais um personagem, ou no mote para a história (ou para suas partes, no caso de Natal).
E todos os elementos surreais se combinam de tal forma, perfeitamente, assim como se encaixam as reações humanas a esses, que passamos a acreditar em cada palavra dita, em cada imagem mostrada, assim como no desfecho surpreendente. “Surpreendente”, entre aspas, só por todos os episódios de Black Mirror se proporem a esse estilo de término. Logo, em especial na última temporada, o “surpreendente” virou o anunciado; um algo com o qual a própria série brinca, no derradeiro episódio Black Museum, que é recheado de “but”.
Poderia continuar elogiando capítulos do passado, como Volto Já (1º da 2ª) ou Toda a Sua História (3º da 1ª). Por razões que se mostram opostas a tudo aquilo que parece ter sido aplicado à última temporada.
Em Arkangel (2º da 4ª), a proposta inicial é instigante, principalmente a da existência de um gadget capaz de censurar o mundo (real) para os olhos de uma criança. Só que o desenrolar da coisa é, antes de tudo, previsível. Indo além, também pouquíssimo convincente, numa combinação fatal (para a paciência do público). Um ser pensante (seja a figura da mãe, quanto da filha) dificilmente cairia no vai e vem impulsionado pela tecnologia apresentada na trama – e aos que quiserem um trato melhor para o tema pais/filhos/tech, recomendo o filme Homens, Mulheres e Filhos, de 2014.
Em Crocodilo, fica uma questão incômoda: por que uma sociedade evidentemente não autocrata aceitaria que se escaneasse a memória de cidadãos com um objetivo tão rasteiro quanto uma investigação de uma empresa de seguros? E em nada foi convincente como a protagonista aceitou que escaneassem suas lembranças. Também não é crível existirem entregadores automáticos de pizza, mas não carros de passeio autônomos nas ruas. E por aí vai.
Em Metalhead, além do tema batidíssimo – e muito melhor trabalhado, por exemplo, em Engenharia Reversa (5º da 3ª) –, ficam questões como: a IA perseguidora seria tão burra a ponto de gastar energia “acordando” ao cair uma pedrinha em sua cabeça (e não perceberia o que as máquinas mais notam – o padrão repetitivo da armadilha?)? Em Black Museum, consegue-se acreditar numa realidade na qual todos os avanços do planeta são usados para coisas como “colocar idosos num mundo virtual”, mas não para avaliar o DNA de um criminoso condenado à cadeira elétrica?
Pode parecer exagero pedir para que uma ficção científica seja convincente. Mas, na verdade, deveria ser o contrário. As melhores ficções científicas são aquelas que pegam o surreal, o inacreditável, e o torna palpável, concreto, quase tangível, próximo de nós.
Em romances do passado, como no clássico Viagem ao Centro da Terra (1864), a tecnologia servia de cenário para as histórias. Em contos mais modernos, como os filmes Alien (1979) e Exterminador do Futuro (1985), ou então os melhores episódios de Black Mirror, ela se tornou personagem ou razão de ser do andar da carruagem. Na nova temporada da criação de Brooker, o erro foi torná-la nem uma coisa, nem outra. Transformou-se apenas numa ferramenta quase que figurativa. E a sina de qualquer ficção científica na qual não conseguimos acreditar, como plateia, é acabar por virar tão-somente um desfile de bobagens.
Isso com duas exceções. Primeiro, em USS Callister (1º da 4ª), cuja história é um tanto maçante, com final óbvio, mas no qual os avanços digitais se materializam de tal forma que o espectador ao menos se sente dentro daquela realidade paralela. Ou em Hang the DJ (4º da 4ª). Este, se não fosse pelo desfecho melado e pela natural comparação com o certeiro San Junipero, poderia ser aplaudido. Tirando no desfecho, a exacerbação de um Tinder convence ao levar um casal a uma sequência de aventuras amorosas que servem de prova de como nosso cérebro, nas mais variadas situações, opera de maneira muito similar a um computador, guiado por algoritmos próprios.
Ditas as explicações, sigo a tradição de resenhar Black Mirror com uma lista, do pior ao melhor, dos episódios desta temporada:
6º Arkangel
5º Crocodilo
4º Metalhead
3º Black Museum
2º USS Callister
1º Hang the DJ (o único que se pode considerar como bom)
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