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Trechos inéditos de livros que estarão em breve nas prateleiras. Editado por Luísa Costa.
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Em livro inédito, Gloria Steinem conta como se formou na estrada

A versão em português do best-seller 'My Life On The Road' chega às prateleiras no início de agosto

Por Luísa Costa Atualizado em 4 jun 2024, 19h04 - Publicado em 15 jul 2017, 08h00
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  • Gloria Steinem, importante ativista social entre mulheres e jornalista, percorreu um longo caminho até ser reconhecida como tal. Tão longo que rendeu o Minha Vida Na Estrada (Ed. Bertrand Brasil, 44 págs., R$ 49,90), livro de cabeceira de atriz Emma Watson. Grande inspiração para mulheres que sonham em se aventurar pelo mundo, a jornalista americana destrincha sua experiência on the road e explica como ela a fez conseguir conhecer pessoas de perto, em suas diferenças, e lutar por um mundo mais igualitário.

    Sua experiência na Índia, onde a violência contra a mulher é latente, a ensinou como elas conseguiam se fortalecer em conjunto. O relato está no segundo capítulo do livro, que chega às livrarias brasileiras no início de agosto. Confira um trecho:

     

    Eu poderia simplesmente ter escrito na minha testa ‘desejo um lar’, mas achava que um lar de verdade teria que esperar até que eu tivesse um marido e filhos, um destino que eu ao mesmo tempo considerava inevitável e não podia sequer imaginar.

    “II.

    Círculos de conversa

    Porque eu via meu pai como um andarilho sem raízes, minha primeira solução foi me tornar o oposto. Eu tinha certeza de que minha infância peculiar daria lugar a uma vida adulta com um emprego, uma casa e um período de férias por ano. Na verdade, eu provavelmente desejava mais essa vida do que pessoas que cresceram nela. Eu poderia simplesmente ter escrito na minha testa ‘desejo um lar’, mas achava que um lar de verdade teria que esperar até que eu tivesse um marido e filhos, um destino que eu ao mesmo tempo considerava inevitável e não podia sequer imaginar. Nem mesmo nos filmes eu tinha visto uma esposa em uma jornada particular. O casamento era sempre o final feliz, não o começo. Eram os anos 1950, e eu confundi crescer com criar raízes.

    Seriam necessários dois anos vivendo na Índia, para onde fui logo depois de terminar a faculdade — para fugir do meu noivado com um homem bom, mas errado —, para que eu me desse conta de que o jeito isolado de viajar do meu pai não era o único. Havia uma estrada compartilhada lá fora, ao mesmo tempo antiga e muito nova.

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    I.

    Quando cheguei a Nova Délhi pela primeira vez, ansiava pelo estilo de ‘viagem memsahib’, com um carro e um motorista, algo que todo funcionário público local e todo turista pareciam capazes de bancar. Eu não conseguia imaginar nenhuma outra forma de circular pelas ruas lotadas de carros de boi lentos, motocicletas velozes, táxis amarelos e pretos que pareciam abelhas, enxames de bicicletas, uma ou outra vaca perdida, ônibus antigos lotados de passageiros dentro e com passageiros pendurados como enfeites viajando de graça do lado de fora, e vendedores ambulantes que saíam correndo para vender comida e bugigangas a cada parada.

    Seriam necessários dois meses sendo uma das raras estrangeiras que moravam na Miranda House, a faculdade feminina da Universidade de Délhi, e convivendo com estudantes de bom coração que me ensinavam como vestir um sári e pegar um ônibus para que eu me desse conta de que, em um carro sozinha, eu não estaria de fato na Índia.

    Eu não veria mulheres se curvando para fora das janelas dos ônibus a fim de comprar guirlandas de jasmim para colocar nos cabelos, ou homens e mulheres sendo infinitamente pacientes com bebês chorosos, ou amigos homens entrelaçando os dedos com naturalidade enquanto conversavam, ou crianças magricelas em uniformes escolares remendados e engomados tentando memorizar o conteúdo dos livros entoando os trechos em voz alta. Não ouviria discussões políticas em inglês indiano, que constrói uma ponte entre catorze línguas, nem testemunharia a variedade assombrosa de jornais que os indianos leem. Também não saberia quão difícil é para um indiano comum simplesmente chegar ao trabalho, ou que a ‘provocação de Eva’, o assédio sexual e as apalpadas que as mulheres podem sofrer em público, era o que minhas amigas de faculdade tentavam evitar andando sempre em grupo. Com certeza nunca teria experimentado a calma das pessoas em multidões que em qualquer outro lugar sinalizariam uma emergência.

    Nunca andei em uma tonga, veículos leves de duas rodas puxados por ciclistas magrinhos. Amigos me asseguraram que elas eram uma evolução em relação aos corredores descalços que tinham sido banidos da Índia independente, embora alguns ainda pudessem ser vistos nos bairros mais pobres. Ser puxado por outro ser humano simplesmente parecia algo colonial e vergonhoso. Isso fez com que fosse bastante irônico que, muitos anos depois, eu visse tongas indianas sendo importadas para Manhattan e puxadas por jovens atléticos e bem alimentados que cobravam por minuto.

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    Mesmo depois de andar em grupo por Nova Délhi, no entanto, ainda seria necessária uma longa viagem pela costa leste da Índia para que eu mudasse minha noção caseira de que o privado é sempre melhor do que o público, algo que os fabricantes de carros norte-americanos pregavam como se fosse um evangelho. Tomada por aquele espírito da juventude de se jogar quando uma pessoa madura pensaria duas vezes, eu tinha decidido viajar sozinha de Calcutá até Kerala, parando em vilas e templos a caminho da parte mais antiga da Índia, na extremidade sul do país. Minhas amigas de faculdade insistiram para que eu viajasse em um dos vagões de trem exclusivos para mulheres que ainda entrecruzavam o subcontinente como um legado dos britânicos.

    Décadas depois, essas mulheres ainda vivem nas minhas lembranças. Tendo sido a primeira estrangeira que elas viram de perto, talvez eu ainda viva nas lembranças delas. Se eu tivesse ficado isolada em um carro, esse círculo de conversa nunca teria acontecido.

    Quando subi naquele antigo vagão de terceira classe, eu me vi em um dormitório sobre rodas. Mulheres de diferentes idades e tamanhos estavam sentadas em grupos conversando, cuidando de bebês ou compartilhando refeições em recipientes para comida feitos de latão conhecidos como tiffins. Como eu era uma estrangeira usando sári, logo despertei curiosidade, bondade e um monte de conselhos, tudo nas poucas palavras em inglês e hindi que partilhávamos, além de um monte de gestos. Uma vez que a viagem durava dois dias, com paradas em muitas estações pequenas, as mulheres negociavam para mim com os vendedores ambulantes que vendiam chai quente, bebidas geladas de cores vibrantes, kebabs e chapatis — além de um sorvete viciante conhecido como kulfi —, tudo através das janelas do trem em cada estação.

    Entre as paradas, elas me ofereciam seus próprios curries, arroz e pães caseiros, me ensinavam mais maneiras de amarrar um sári do que eu achava que fosse possível — incluindo uma para jogar tênis — e discutiam sobre as variedades de manga com todas as nuances que os ocidentais reservam aos vinhos.

    Logo aprendi que havia um costume bastante indiano de fazer perguntas pessoais. Isso devia deixar os reticentes ingleses malucos! “Por que a sua família não encontrou um marido para você?”, “Todos os americanos são ricos, então por que você está aqui conosco, na terceira classe?”, “Todo mundo nos Estados Unidos tem uma arma?”, “Se eu fosse para o seu país, eu seria bem-vinda?”. E depois que passamos a nos conhecer melhor: “Como as mulheres norte-americanas fazem para evitar ter muitos bebês?”

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    Mais tarde eu ouviria Indira Gandhi descrever suas viagens de juventude nesses vagões exclusivos para mulheres como tendo sido a melhor preparação para se tornar primeira-ministra. Ela era filha de Jawaharlal Nehru, o primeiro primeiro-ministro da Índia, mas, mesmo assim, achava que tinha aprendido mais com aquelas mulheres, cujos pontos de vista eram pessoais. Elas sabiam que o khadi, pano indiano fiado e tecido à mão, estava saindo de circulação por causa dos tecidos feitos à máquina da Inglaterra — mesmo que não soubessem que esse era o padrão colonial familiar de retirar matéria-prima da colônia, transformá-la na Inglaterra e vendê-la de volta para a colônia a fim de obter lucro. Podiam ver por que Mahatma Gandhi tinha adotado a roda de fiar como símbolo da independência indiana.

    Além disso, apesar da crença dos especialistas em populações de que as mulheres não educadas não usariam métodos anticoncepcionais, aquelas mulheres sabiam muito bem que seu corpo estava sofrendo com o excesso de gravidezes e trabalhos de parto. Foi por isso que, como primeira-ministra, Indira Gandhi enfrentou as controvérsias e criou o primeiro programa de planejamento familiar nacional. As primeiras viagens nesses vagões exclusivos para mulheres ensinaram a ela que a mulher comum usaria métodos anticoncepcionais, mesmo que em segredo, e que o grau de instrução pouco tinha a ver com isso.

    Da minha parte, lembro não apenas do aprendizado, mas também das risadas. Pediram que eu cantasse uma música norte-americana — todo mundo na Índia parecia cantar como parte do cotidiano —, mas mesmo elas tiveram que admitir que eu não levava jeito. Me ensinaram como espremer minhas mãos para enfiá-las por pulseiras de vidro que eram pouco maiores do que o meu punho e me explicaram que as cholis, as blusas apertadas usadas por baixo dos sáris, são o equivalente indiano para o sutiã. Elas me apresentaram a lichia fresca — eu nunca tinha visto uma fora da lata — e me alertaram sobre os homens indianos que tentavam se casar com uma norte-americana só para conseguir um visto e um emprego.

    Eu ouvia enquanto os moradores contavam histórias sobre incêndios e assassinatos, roubos e estupros, com um medo e um trauma que não precisavam de tradução. Era difícil imaginar algo que pudesse diminuir aquele ciclo de violência, mesmo assim os aldeões encontravam conforto nos vizinhos que tinham se aventurado a sair de suas casas também.

    Décadas depois, essas mulheres ainda vivem nas minhas lembranças. Tendo sido a primeira estrangeira que elas viram de perto, talvez eu ainda viva nas lembranças delas. Se eu tivesse ficado isolada em um carro, esse círculo de conversa nunca teria acontecido. Depois que nos despedimos, embarquei em um ônibus caindo aos pedaços para o interior, com destino a um ashram de Vinoba Bhave, o líder de um movimento de reforma agrária inspirado por Gandhi. Gandhi havia sido assassinado uma década antes, mas Bhave ainda ia de vila em vila, pedindo que os proprietários de terra dessem uma pequena porcentagem dos seus acres para os sem-terra. Eu havia escrito para um missionário norte-americano aposentado que fazia parte desse movimento, e ele conseguiu fazer com que eu ficasse em uma hospedaria próxima de lá.

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    Quando cheguei ao ashram de Bhave, porém, quase todo mundo já tinha deixado o local. Um homem idoso me explicou que motins de castas haviam ocorrido ali perto, em Ramnad, uma grande área rural no sudeste do país, e os líderes governamentais na distante Nova Délhi haviam ordenado que isolassem a área, na esperança de conter os incêndios e os assassinatos. Nem mesmo aos repórteres era permitido ter acesso à área. Mesmo assim, equipes de três ou quatro pessoas do ashram tinham desviado dos bloqueios na estrada e estavam indo de vila em vila, realizando reuniões, dizendo às pessoas que elas não tinham sido abandonadas e afastando rumores que eram ainda piores do que a realidade — um esforço organizacional no local da ação para reverter a espiral de violência.

    Cada equipe tinha que incluir pelo menos uma mulher. Os homens não podiam entrar nos alojamentos das mulheres para convidá-las para as reuniões, e, se não houvesse uma mulher presente, outras provavelmente não compareceriam. Porém, no ashram não havia mais nenhuma mulher.

    Foi assim que fui persuadida de que uma estrangeira vestindo um sári não pareceria mais fora de contexto do que alguém de Nova Délhi, e assim me vi deixando todos os meus pertences, exceto um copo, um pente e o sári que eu estava vestindo, e entrando em um ônibus caindo aos pedaços. Como meu companheiro, o homem idoso do ashram, me explicou que, se os aldeões quisessem paz, eles dariam abrigo e alimentariam os pacificadores. Se não quisessem a paz, nenhum forasteiro poderia ajudá-los de qualquer maneira. Ao iniciarmos a nossa viagem, percebi que, sem nenhum pertence, eu me sentia estranhamente livre.

    Depois de horas naquele velho ônibus que parecia parar em todos os lugares, chegamos ao local onde as barreiras policiais haviam bloqueado a estrada poeirenta que levava a Ramnad. Sem um automóvel ou mesmo um carro de bois, simplesmente passamos pela estrada e entramos naquela vasta área tão traumatizada por conflitos de casta.

    Assim começou uma semana diferente de todas as outras. Andávamos entre uma vila e outra com o sol a pino, parando para nos refrescar em córregos rasos ou encontrando sombra em pomares onde chai e bolinhos de arroz cozidos no vapor chamados idlis eram vendidos, em abrigos com teto de folhas de palmeira. À noite, eu observava os moradores da vila saírem aos poucos de suas pequenas casas de barro e se sentarem ao redor de lampiões de querosene em círculos de seis, vinte ou cinquenta pessoas. Eu ouvia enquanto os moradores contavam histórias sobre incêndios e assassinatos, roubos e estupros, com um medo e um trauma que não precisavam de tradução. Era difícil imaginar algo que pudesse diminuir aquele ciclo de violência, mesmo assim os aldeões encontravam conforto nos vizinhos que tinham se aventurado a sair de suas casas também. As pessoas pareciam aliviadas por verem umas às outras, conversarem, serem ouvidas, discernirem a verdade dos rumores e descobrirem que alguém de fora sabia o que estava acontecendo e se importava.

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    Para a minha surpresa, essas longas noites geralmente terminavam com um compromisso de continuarem a se encontrar, para separarem o que era verdade e do que não era, e de se recusarem a fazer parte de ciclos vingativos que só os expunham ainda mais ao perigo. Às vezes já estava quase amanhecendo quando íamos para casa com famílias que nos alimentavam e nos davam esteiras de palha ou charpoys, suportes de madeira acordoados com cânhamo, nos quais dormíamos.

    Foi a primeira vez que testemunhei a magia ao mesmo tempo antiga e moderna de grupos nos quais qualquer um pode falar, cada um na sua vez, todos devem ouvir, e o consenso é mais importante do que o tempo.

    Eu não fazia ideia de que esses círculos de conversa tinham sido uma forma comum de governar durante a maior parte da história humana, desde os povos kwei e san no sul da África, ancestrais de todos nós, às Primeiras Nações do meu próprio continente, onde camadas desses círculos deram origem à Confederação Iroquesa, a democracia mais antiga do mundo. Os círculos de conversa existiram também na Europa, antes que inundações, a fome e o domínio patriarcal os substituíssem pela hierarquia, pelos padres e reis. Eu nem sequer sabia, enquanto estava em Ramnad, que uma onda de círculos de conversa e de ‘testemunhos’ estava tomando as igrejas negras do meu próprio país e desencadeando o movimento dos direitos civis. E, definitivamente, não imaginava que, uma década depois, veria grupos de conscientização, os círculos de conversa de mulheres, darem origem ao movimento feminista. Tudo que eu sabia era que uma parte bem profunda de mim estava sendo nutrida e transformada juntamente com os moradores daquelas vilas.

    Eu podia ver que, porque os seguidores de Gandhi sabiam ouvir, eles também eram ouvidos. Porque dependiam da generosidade, eles criavam generosidade. Porque escolhiam um caminho não violento, eles faziam com que esse caminho parecesse possível. Esta é a sabedoria organizacional prática que eles me ensinaram:

    Se quiser que as pessoas o ouçam, você precisa ouvi-las.

    Se espera que as pessoas mudem a forma como vivem, você precisa conhecer como elas vivem.

    Se quiser que as pessoas o enxerguem, você precisa se reunir com elas, olhando-as nos olhos.

    Eu com certeza não sabia que cerca de dez anos depois que voltei para casa, a organização na estrada começaria a tomar conta da maior parte da minha vida.”

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