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Trechos inéditos de livros que estarão em breve nas prateleiras. Editado por Luísa Costa.
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Livro de Diamela Eltit fala sobre ser mulher na ditadura

A chilena é uma das escritoras mais aguardadas na 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece de 26 a 30 de julho

Por Da redação
Atualizado em 4 jun 2024, 18h39 - Publicado em 21 jul 2017, 16h30
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  • A chilena Diamela Eltit, uma das escritoras mais aguardadas na 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), apresenta seu primeiro romance traduzido para os brasileiros, Jamais o Fogo Nunca (Ed. Relicário, 172 págs., R$ 39,00). A obra é narrada em primeira pessoa e se constitui pela voz de uma mulher marcada pela luta política durante o regime militar. O livro aborda profundas arestas sobre a sanidade e a complexidade do pensamento de uma mulher e seu marido confinados em casa durante a ditadura.

    A escritora, que iniciou sua trajetória nos anos 1980 durante pesada ditadura, recebeu prêmios e foi pioneira em abordar questões como o feminismo e o autoritarismo do Estado. Em Paraty, entre 26 e 30 de julho, a autora irá discutir, ao lado do cineasta e documentarista Carlos Nader, linguagens na fronteira e resistência artística. Confira o primeiro capítulo do livro, que chega às livrarias no final de julho:

    Me viro, ponho minha mão sobre o seu quadril e sacudo você uma e outra vez, rápido, ostensiva. Quando morreu Franco, pergunto, em que ano. Quê?, quê?, você diz. Quando morreu, eu digo, Franco, em que ano.

    “Estamos jogados na cama, entregues à legitimidade de um descanso que merecemos. Estamos, sim, jogados na noite, compartilhando. Sinto o seu corpo dobrado contra as minhas costas dobradas. Perfeitos. A curva é a forma que melhor nos acomoda porque podemos harmonizar e desfazer nossas diferenças. Minha estatura e a sua, o peso, a distribuição dos ossos, as bocas. O travesseiro sustenta equilibradamente as nossas cabeças, separa as respirações. Tusso. Levanto a cabeça do travesseiro e apoio o cotovelo na cama para tossir tranquila. Incomoda você e até certo ponto lhe preocupa a minha tosse. Sempre. Você se mexe para me mostrar que está ali e que eu me excedi. Mas agora você dorme enquanto eu mantenho ritualmente minha vigília e meu afogamento. Terei que lhe dizer, amanhã, sim, amanhã mesmo, que devo racionar seus cigarros, reduzi-los ao mínimo ou definitivamente deixar de comprá-los. Não temos o bastante. Você apertará as mandíbulas e fechará os olhos quando me escutar, e não vai me responder, eu sei. Permanecerá impávido como se as minhas palavras não tivessem a menor aderência e continuasse ali, íntegro, o maço que compro fielmente para você.

    Você gosta, você se importa com isso, você precisa fumar, eu sei, mas você não pode mais, eu não posso, não quero. Não mais. Você pensará, eu sei, em quanto você tem se sustentado nos cigarros que consome sistematicamente. Tem sido assim, mas já não é necessário.

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    Não.

    Não consigo dormir e, entre os minutos, através dos segundos que não chego a precisar, se intromete uma inquietude absurda mas que se impõe como decisiva, a morte, sim, a morte de Franco. Não consigo lembrar quando Franco morreu. Quando foi, em que ano, em que mês, em que circunstâncias, você me disse: Franco morreu, finalmente morreu, jogado como um cachorro. Mas você estava fumando e eu também nesse momento. Você fumava enquanto falava da morte e eu fumava e, enquanto acompanhava seu rosto adolescente, abertamente ressentido e lúcido e de certa forma deslumbrante, apaguei o cigarro entendendo que era o último, que eu nunca mais fumaria, que nunca gostei de aspirar aquela fumaça e engolir a queimação do papel. Sinto o seu cotovelo apoiado na minha costela, penso que ainda tenho costela, e aceito, sim, me entrego ao seu cotovelo e me conformo com a minha costela.

    Me viro, ponho minha mão sobre o seu quadril e sacudo você uma e outra vez, rápido, ostensiva. Quando morreu Franco, pergunto, em que ano. Quê?, quê?, você diz. Quando morreu, eu digo, Franco, em que ano. Com um só impulso você se senta na cama, veloz, atravessado por uma fúria muscular que você já não exerce nunca e que me surpreende. Apoia a cabeça na parede, mas de imediato volta a deslizar entre os lençóis para ficar de costas para mim.

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    Quando?, eu pergunto, quando?

    Com a respiração agitada demais, você chega à borda da cama, não sei, me responde, fique quieta, durma, vire para lá. Um dia específico de um ano específico, mas que não faz parte de uma ordem. Uma cena desprendida, já inarticulada na qual fumávamos concentrados, entregues à nossa primeira célula, enquanto você, precocemente sábio, com a plenitude que as habilidades podem alcançar, sustentava algumas palavras legítimas e consistentes que não se podiam contornar, e nós o olhávamos extasiados – os seus argumentos – quando você explicava a morte de Franco e eu, cativada pelo rigor das suas palavras, apagava o cigarro possuída por um nojo final e observava o papel destroçado contra o filtro, o olhava no cinzeiro e pensava, nunca mais, é o último, acabou, pensava e pensava por que eu tinha fumado tanto naquele ano se não gostava, na verdade, da fumaça. Visualizo o cinzeiro, o cigarro apagado com os filamentos escassos de tabaco desfeitos em seu centro. Eu o tenho. Tenho também a morte de Franco, mas não o ano, nem o mês e muito menos o dia. Me diga, me diga, pergunto. Não comece, não continue, durma, você responde. Mas eu não posso, não sei como dormir se não recupero a parte perdida, se não escapo do buraco nefasto do tempo que preciso atrair. A ponta do cigarro amassada contra o cinzeiro, os meus dedos, a sequência das suas palavras convincentes, jogado como um cachorro, em sua cama, o assassino, ou talvez você tenha dito: o homicida, e meu nojo definitivo ao trago de fumaça, o último.

    A morte pública de Franco, jogado na cama, morrendo de tudo, praticamente sem órgãos, você disse, o tirano, você dizia, morto de velho ou de ancião, rodeado por seu séquito, você dizia, de franquistas, os médicos. De noite, tarde, à beira de um amanhecer exaustivo prosseguiam as discussões, os argumentos, e entre todas as palavras possíveis, claro, as suas soavam mais sábias e mais certeiras, enquanto eu fumava ao longo dessa noite que nunca vacilou até que, de repente, me senti verdadeiramente ácida, meus pulmões, e tive que apagá-lo, o cigarro, para nunca mais.

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    Depois você me ofereceu um, quer um cigarro?, já amanhecia, não, não quero. Não, eu disse, não quero, e tive que vislumbrar em seu olhar um relance de inquietude mesclado com uma clara decepção. Um primeiro, incipiente, indesculpável olhar de abandono ou de rancor material. Mas, me diga, quando. Fique quieta. Você faz com que eu me cale justo nos momentos em que o lençol desastroso se enrolou, mais uma vez, nas minhas pernas e nos meus braços, sente-se, mexa-se, enquanto eu arrumo o lençol, furiosa, sem entender se é contra mim ou contra você, sem me convencer. Como pude me esquecer do ano, de um ano que você sim lembra e não me diz, eu sei, para impedir que eu retome a questão do cigarro.

    Estalinista, Martín me chamou, depois, muitos anos adiante, no tempo em que já não éramos (Martín agora mesmo se adianta, está parado aos pés da nossa cama, desfigurado, negando as minhas palavras, reiterando neste século suas mentiras). Ele me chamou de estalinista e você, que escutava a expressão dele, que a ouvia, virou a cabeça, impassível como se não. Quem foi que me chamou de estalinista, fique quieta. Quem foi, insisto, enquanto sacudo o seu quadril. Ah, você me diz, preciso dormir, chega, durma, por favor durma, me deixe tranquilo. Você levantou a voz, fala comigo num tom delirante. Agressivo.

    Ardem os meus olhos de um sono que parece um mero sintoma. Não consigo dormir, cale a boca. Estalinista, ele me cutucou abertamente, enquanto eu olhava para você procurando algum resguardo, e você, instalado já na indiferença, continuava alheio, enquanto eu escutava umas palavras que giravam loucamente sem entender por completo de qual ira elas provinham. Ele me chamou de estalinista. Repetiu. Sei quem foi que disse isso, Martín (da beira da cama ele toca a própria cabeça, alardeia, exibe seu contorno ostensivamente irregular, deteriorado). Tenho em minha retina seus olhos e os matizes de sua expressão, mas agora espero que seja você que diga quem foi, para assim escutar dos seus lábios, dos seus, por que você não disse nada, em que ponto de deserção você estava, imperturbável, eu lembro.

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    Não importa, você me diz, durma, pare, esqueça. No meio de uma discussão que parecia irrisória, quando tudo já tinha se confundido, você tinha chegado só para escutar de maneira ambígua, marcando a sua distância e a sua ironia, e eu já não pude, não consegui me manter em silêncio, não fui capaz e disse, mas como, e disse, isso me parece injusto ou improcedente, consegui dizer ambas as coisas ou pode ser, pode ser que tenha expressado, com incômodo tranquilo, eu sei, que não era possível dialogar naqueles termos e então ele detonou a condenação definitiva, enlaçada em uma resposta lapidar: estalinista. Mexa a perna, me incomoda, a calça fica raspando, por que você tem que dormir de calça. Fique quieta.

    Mas agora novamente vai amanhecer. Sei que depois não comentamos o ocorrido e esgrimimos uma cortesia desmedida. Fizemos isso enquanto voltávamos daquela que seria a última reunião daquela célula. Sim. Você se comportou como se eu não merecesse todas as deferências, como se fosse possível pensar que nada tinha acontecido. Mas era o último encontro de um ano intransigente que nenhuma das palavras que você manejava já podiam conter.

    Você se comportou como um cachorro.

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    Você já tinha se convertido num cachorro, penso agora. Penso enquanto meu braço entregue à vigília me tortura por seu roçar inevitável com a parede monolítica que nos cerca.”

     

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