O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tornou-se famoso ao cunhar a ideia de liquidez como o adjetivo fundamental das relações humanas atuais. De Modernidade Líquida (2000) ao best-seller Amor Líquido (2003), suas ideias sobre a fragilidade dos laços sociais em uma comunidade cada vez mais livre saíram da Academia e viraram queridinhas de filósofos de boteco.
Desta vez, o que chama sua atenção é a crise migratória – uma crise humanitária, ressalta – e o “pânico moral”, o medo de que algo terrível esteja ameaçando o bem-estar da sociedade. Seu novo livro, Estranhos à Nossa Porta (Editora Zahar, 120 págs.), chega no dia 12 de janeiro às livrarias brasileiras com críticas afiadas. Os alvos são governantes em ascensão, como Donald Trump, que conseguiram apoio tão alto quanto os muros que almejam erguer para conter imigrantes.
Confira trecho do primeiro capítulo do livro:
“Os noticiários de TV, as manchetes de jornal, os discursos políticos e os tuítes da internet, usados para transmitir focos e escoadouros das ansiedades e dos temores do público, estão atualmente sobrecarregados de referências à ‘crise migratória’ – que aparentemente estaria afundando a Europa e sinalizando o colapso e a dissolução do modo de vida que conhecemos, praticamos e cultivamos. Essa crise é hoje uma espécie de codinome politicamente correto para a fase atual da eterna batalha dos formadores de opinião pela conquista e subordinação das mentes e dos sentimentos humanos. O impacto das notícias transmitidas desse campo de batalha quase chega a causar um verdadeiro “pânico moral”. (Segundo a definição em geral aceita desse fenômeno, tal como registrada pela versão em inglês da Wikipédia, o conceito de “pânico moral” significa “um sentimento de medo compartilhado por grande número de pessoas de que algum mal está ameaçando o bem-estar da sociedade”.)
Enquanto escrevo estas palavras, outra tragédia – nascida da indiferença insensível e da cegueira moral – está à espreita, pronta para o ataque. Acumulam-se os sinais de que a opinião pública, em conluio com uma mídia ávida por audiência, está se aproximando de modo gradual, porém inexorável, do ponto de ‘fadiga da tragédia dos refugiados’. Crianças afogadas, muros apressadamente erguidos, cercas de arame farpado, campos de concentração superlotados e competindo entre si para acrescentar o insulto de tratarem os migrantes como batatas quentes às injúrias do exílio, de escapar por pouco dos perigos enervantes da viagem rumo à segurança – todas essas ofensas morais cada vez são menos notícia e aparecem com menor frequência ‘no noticiário’. Infelizmente, o destino dos choques é transformar-se na rotina tediosa da normalidade – e o dos pânicos é desgastar-se e desaparecer da vista e das consciências, envoltos no véu do esquecimento. Quem se lembra agora dos refugiados afegãos buscando asilo na Austrália, espremendo-se contra as cercas de arame farpado de Woomera ou confinados nos grandes centros de detenção construídos pelo governo australiano em Nauru ou na ilha Christmas, ‘para impedi-los de entrar em suas águas territoriais’? Ou das dezenas de exilados sudaneses mortos pela polícia no centro do Cairo, ‘após terem sido privados de seus direitos pelo Alto Comissariado para Refugiados, das Nações Unidas’?¹
A migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente. Ele tem acompanhado a era moderna desde seus primórdios (embora com frequência mudando e por vezes revertendo a direção) –, já que nosso ‘modo de vida moderno’ inclui a produção de ‘pessoas redundantes’ (localmente ‘inúteis’, excessivas ou não empregáveis, em razão do progresso econômico; ou localmente intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causados por transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder). Além de tudo isso, contudo, hoje suportamos as consequências da profunda e aparentemente insolúvel desestabilização do Oriente Médio, na esteira das políticas e aventuras militares das potências ocidentais, estupidamente míopes e reconhecidamente fracassadas.
Assim, os fatores subjacentes aos atuais movimentos de massa nos pontos de partida são biformes, mas também o são seus impactos nos pontos de chegada e as reações dos países receptores. Nas partes ‘desenvolvidas’ do planeta, em que tanto migrantes econômicos quanto refugiados buscam abrigo, os interesses empresariais desejam com firmeza o (e dão boas-vindas ao) influxo de mão de obra barata e de habilidades lucrativamente promissoras (como Dominic Casciani expressivamente resumiu: ‘Os empregadores britânicos se tornaram experts no que se refere a obter trabalhadores estrangeiros baratos, com as agências de emprego dando duro no continente para identificar e contratar mão de obra de fora’);² para a massa da população, já assombrada pela fragilidade existencial e pela precariedade de sua condição e de suas expectativas sociais, esse influxo sinaliza ainda mais competição pelo mercado de trabalho, uma incerteza mais profunda e chances declinantes de melhoramento: um estado mental politicamente explosivo – com políticos oscilando com dificuldade entre os desejos incompatíveis de satisfazer seus amos detentores de capital e aplacar o medo dos eleitores.
A ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não produzimos nem controlamos, é uma importante causa de ansiedade e medo
Considerando-se tudo isso, do modo como as coisas estão e prometem continuar por muito tempo, é improvável que a migração em massa venha a se interromper, seja pela falta de estímulo, seja pela crescente engenhosidade das tentativas de sustá-la. Como Robert Winder jocosamente observou no prefácio da segunda edição de seu livro: ‘Podemos colocar nossa cadeira na praia com a frequência que quisermos e gritar para as ondas que chegam, mas a maré não vai ouvir, nem o mar vai recuar.’³ A construção de muros para impedir que os migrantes cheguem perto de “nossos quintais” aproxima-se ridiculamente da história do antigo filósofo Diógenes, empurrando o barril em que vivia de um lugar para outro ao longo das ruas de sua Sínope natal. Indagado sobre as razões de seu estranho comportamento, respondeu ele que, vendo seus vizinhos ocupados em guarnecer suas portas e afiar suas espadas, desejava contribuir também para a defesa da cidade, evitando que fosse conquistada pelas tropas de Alexandre da Macedônia, que se aproximavam.
O que tem acontecido nos últimos anos, contudo, é um enorme salto no contingente de refugiados e pessoas em busca de asilo, acrescido ao volume total de migrantes que já batiam às portas da Europa; esse salto foi causado pelo número crescente de Estados ‘afundando’, ou já submersos, ou – para todos os fins e propósitos – de territórios sem Estado, e portanto também sem leis, palcos de intermináveis guerras tribais e sectárias, assassinatos em massa e de um banditismo permanente do tipo salve-se quem puder. Em grande medida, trata-se de um dano colateral produzido pelas expedições militares ao Afeganistão e ao Iraque, fatalmente mal avaliadas, mal conduzidas e calamitosas. Elas terminaram com a substituição dos regimes ditatoriais pelo teatro sempre aberto da desordem e num frenesi de violência – ajudado e instigado pelo comércio global de armas, livre de controle e alimentado por uma indústria armamentista ávida por lucros, e com o apoio tácito (embora, com muita frequência, orgulhosamente exibido em público nas feiras internacionais de armas) de governos ansiosos por aumentar seu PIB. O fluxo de refugiados impulsionados pelo regime de violência arbitrária a abandonar suas casas e propriedades consideradas preciosas, de pessoas buscando abrigo dos campos de matança, acrescentou-se ao fluxo constante dos chamados “migrantes econômicos”, estimulados pelo desejo demasiadamente humano de sair do solo estéril para um lugar onde a grama é verde: de terras empobrecidas, sem perspectiva alguma, para lugares de sonho, ricos em oportunidades. Sobre essa corrente contínua de pessoas que buscam a chance de um padrão de vida decente (uma corrente que flui incessantemente desde o início da humanidade, apenas acelerada pela moderna indústria de pessoas redundantes e vidas desperdiçadas),⁴ Paul Collier tem a dizer o seguinte:
O primeiro fato é que a disparidade de renda entre países pobres e ricos é grotescamente ampla, e o processo de crescimento global vai fazer com que assim permaneça por muitas décadas. O segundo é que a migração não vai reduzir de modo significativo essa disparidade, porque os mecanismos de feedback são muito fracos. O terceiro é que, com a continuidade da migração, as diásporas continuarão a se expandir por algumas décadas. Assim, a disparidade de renda vai persistir, enquanto o detonador da migração vai aumentar. No futuro previsível, a migração internacional não atingirá um equilíbrio: temos observado o início de um desequilíbrio de proporções épicas.⁵
Entre 1960 e 2000, como calculou Collier (tendo disponíveis, no momento em que escreveu, apenas as estatísticas até aquele último ano), ‘o que decolou, de 20 milhões para mais de 60 milhões, foi a migração dos países pobres para os ricos. Além disso, esse aumento acelerou-se a cada década. … É razoável supor que no ano 2000 essa aceleração tenha continuado’. Deixadas por conta de sua própria lógica e de seu próprio impulso, podemos dizer, as populações dos países pobres e ricos se comportariam como um líquido em vasos comunicantes. O número de imigrantes tende a crescer rumo ao equilíbrio, até que os níveis de bem-estar se igualem nos setores ‘desenvolvidos’ (?) e ‘em desenvolvimento’ do planeta globalizado. Esse resultado, no entanto, com toda probabilidade, vai levar muitas décadas para ser alcançado, mesmo desconsiderando-se as guinadas imprevistas do destino histórico.
Refugiados da bestialidade das guerras, dos despotismos e da brutalidade de uma existência vazia e sem perspectivas têm batido à porta de outras pessoas desde o início dos tempos modernos. Para quem está por trás dessas portas, eles sempre foram – como o são agora – estranhos. Estranhos tendem a causar ansiedade por serem “diferentes” – e, assim, assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com as quais interagimos todos os dias e das quais acreditamos saber o que esperar. Pelo que conhecemos, o influxo maciço de estranhos pode ser o responsável pela destruição das coisas que apreciávamos, e sua intenção é desfigurar ou abolir nosso modo de vida confortavelmente convencional. Essas pessoas com as quais estamos acostumados a coexistir em nossos bairros, nas ruas das cidades ou nos locais de trabalho, nós as dividimos em geral entre amigas ou inimigas, bem-vindas ou apenas toleradas. Mas, qualquer que seja a categoria em que as situemos, sabemos muito bem como nos comportar em relação a elas e como conduzir nossas interações. Sobre os estranhos, porém, sabemos muito pouco para sermos capazes de interpretar seus artifícios e compor nossas respostas adequadas – adivinhar quais possam ser suas intenções e o que farão em seguida. E a ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não produzimos nem controlamos, é uma importante causa de ansiedade e medo.”
(As imagens utilizadas no post são meramente ilustrativas e não fazem parte da obra citada)