Publicado na edição impressa de VEJA
FÁBIO ALTMAN*
Em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o patriarca José Arcadio Buendía inventa um engenhoso método para compensar uma peste, sucedânea da insônia, que engole o povoado de Macondo e apaga a memória dos cidadãos. Com um pincel começa a marcar em etiquetas o nome e a utilidade de cada objeto. No pescoço de uma vaca, uma placa informa: “Esta é a vaca que deve ser ordenhada todas as manhãs para produzir leite e o leite deve ser fervido para poder ser misturado ao café”. E seguia a vida, com mais de 14 000 bilhetes e a euforia da reconquista das lembranças. Na Macondo particular de Eder Jofre, um quarto tão simples quanto bem arrumado, de 2 por 4 metros, na casa da filha, no bairro de Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, uma folha de papel A4 colada na porta do armário de madeira compensada avisa com letras femininas e carinho: “Eu, Eder Jofre, moro com a minha filha Andrea, o marido, Oliveira, e os filhos Lanika, Axel, Babi e Sidney. Moro aqui há nove meses. Quem cuida das minhas coisas são os meus filhos Marcel e Andrea. Estou morando aqui desde que minha esposa, Maria Aparecida Jofre (Cidinha), faleceu, em 10 de maio de 2013. Aqui sou lembrado dos meus remédios e compromissos. Pela manhã, após o café, tenho que me exercitar, desenhar e escrever. Depois do almoço descanso e desenho, com a mão esquerda. Depois do lanche me exercito e assisto TV. Depois do jantar volto a assistir TV até a hora de dormir”. É – ou deveria ser – leitura diária a caminho de jornadas árduas, de recuperação da consciência de quem é ou foi.
Eder Jofre é o maior pugilista brasileiro de todos os tempos, campeão mundial em duas categorias (galo e pena), reverenciado por especialistas em boxe de todo o mundo — a capa da edição número 500 da revista americana de referência para o esporte, The Ring, em outubro de 1963, tinha foto de Eder e a pergunta que pressupunha uma única resposta, incontornável: “O maior boxeador do mundo?”. Aos 78 anos, Eder foi à lona pela primeira vez na vida com a morte repentina da mulher, em maio do ano passado, de infarto. “Ela era a cabeça e meu pai, o corpo”, resume Andrea Jofre. Funcionaram perfeitamente nessa combinação durante os 52 anos de casamento. No relato dos filhos, Eder era um homem até 10 de maio do ano passado, virou outro a partir do dia 11. Parou de comer, chorava copiosamente. Enfraquecido, começou a apresentar episódios de confusão mental. Há pelo menos nove anos já dava sinais, silenciosamente enganadores, de perda de memória — a chave do carro que punha todos os dias no mesmo móvel e já não conseguia encontrar, os sinais vermelhos ultrapassados, o esquecimento das listas de compras de supermercado que não passavam de cinco itens, as diversas vezes que indagava “que dia é hoje?”. Mas nada comparado ao estado de prostração no qual mergulhou. A morte da mulher alterou o funcionamento do seu cérebro. Eder ficou grogue com o desequilíbrio dos neurotransmissores serotonina, dopamina e noradrenalina, responsáveis por sensações de satisfação e bem-estar.
Deprimido, foi internado na Santa Casa de São Paulo. Era incapaz de realizar mesmo as sinapses cerebrais básicas, quanto mais as que o fizeram famoso no auge da carreira de 81 lutas e apenas duas derrotas por pontos. Seu corpo jovem obedecia com exatidão às ordens emanadas do cérebro, uma sinfonia química e elétrica que fazia dele no ringue uma casamata de músculos contraídos de onde surgiam sem aviso punhos rápidos como o raio e duros como o aço. O cérebro do jovem lutador liberava cortisol no momento certo e na dose exata e o fazia contrair o abdômen, rearmar a guarda, recolher os punhos quando o adversário ainda estava avaliando o castigo que acabara de levar. Em Eder Jofre se combinaram admiravelmente a habilidade, a velocidade, a força, o sacrifício, o coração, a inteligência e os reflexos, qualidades que fazem do boxe, se não a única maneira civilizada de liberar a violência inata do homem, com certeza a forma esportiva mais pura de atender ao instinto de domínio sobre o outro. Eder encarnou a expressão máxima dessa arte. O Brasil sabe disso. O mundo reconhece. A tragédia é que o próprio Eder Jofre, aprisionado no porão de um cérebro que decai, não compreende mais as alturas que galgou.
Eder recebeu alta do hospital com diagnóstico preliminar de Alzheimer associado a depressão. Passou a tomar dois medicamentos para Alzheimer — memantina e galantamina — e um antidepressivo. Impressionado com o estado de saúde do ex-pugilista, em rápida deterioração, o médico da Confederação Brasileira de Boxe, Bernardino Santi, indicou ao filho de Eder, Marcel, o nome do neurologista Renato Anghinah, do Hospital das Clínicas de São Paulo, com quem divide um projeto inédito de estudo dos efeitos dos golpes de boxe na saúde dos profissionais. Anghinah, de reputação internacional, é um estudioso da encefalopatia traumática crônica — mal deflagrado depois de concussões repetidas na cabeça e associado ao boxe desde a década de 20. Ele integra o grupo liderado pelo neurologista Ricardo Nitrini, que investiga, no banco de encéfalos da Universidade de São Paulo, o cérebro do zagueiro Bellini, capitão de 1958, morto em março deste ano, criador do gesto imortal de erguer a taça acima da cabeça, que também se supunha ter Alzheimer. Bellini, porém, pode ter sido vítima das cabeçadas na bola e dos choques com os atacantes adversários nas jogadas aéreas.
VEJA obteve dos filhos de Eder a autorização para acompanhar os exames realizados no Hospital Samaritano, em São Paulo, sob a supervisão de Anghinah. Os resultados confirmam: os golpes recebidos durante a carreira são responsáveis pelo estado atual de Eder. Não se trata de Alzheimer. “Com todos os elementos estudados, o quadro é compatível com a encefalopatia crônica”, diz Anghinah. Inicialmente conhecida no meio científico como demência pugilística — nome depois abandonado, porque ela afeta também atletas de outras modalidades, como o futebol americano e o hóquei no gelo —, a encefalopatia atinge cerca de 20% dos boxeadores. Ocorre, em média, dezesseis anos depois de jogada a toalha. Mas pode despontar meses, anos ou décadas depois do último golpe. No caso de Eder, a doença começou a dar os primeiros sinais 28 anos depois do fim da carreira. Apesar de protegido pelo crânio, o cérebro não está imune às concussões em sequência. A cada pancada, o órgão chacoalha dentro da caixa craniana, e é inevitável que se choque contra suas paredes. Nesse vaivém, os neurônios sofrem rupturas. Como consequência, ocorre a liberação da proteína tau — em quantidades normais, ela é responsável pela boa estrutura dos neurônios. Com os socos, volumes exponenciais da proteína se acumulam no cérebro e viram veneno. A tau é liberada duas horas depois do trauma e fica lá por três meses, no mínimo. Ao longo da carreira, o cérebro de Eder foi inundado por um mar tóxico de proteína tau.
Os sintomas começam com uma diminuição discreta da memória e da atenção. Conforme avançam, a amnésia torna-se frequente, assim como a lentidão do pensamento e a dificuldade para planejar e realizar ações concretas, como pegar a chave do carro deixada no aparador. Pode vir acompanhada também de episódios de agressividade ou parkinsonismo. É um comportamento típico de danos cerebrais que atingem o lobo frontal, a região responsável pelas funções executivas, planejamento e organização. Apesar dos extraordinários recursos tecnológicos de análise do cérebro por imagem, um diagnóstico mais detalhado da encefalopatia traumática crônica só pode ser dado depois de exames anatomopatológicos, feitos a partir da dissecção do cérebro. No microscópio, é possível perceber depósitos de proteína tau no tálamo, na amígdala e no córtex frontal. A proteína é distribuída de forma irregular nas camadas superficiais do córtex. Ela se aloja, principalmente, nas regiões mais profundas e nas áreas ao redor dos vasos sanguíneos. Somente a dissecção, como ocorre agora com o cérebro de Bellini, permitirá um entendimento 100% certeiro do que há com Eder. Mas, desde já, um novo tratamento foi proposto. Anghinah retirou os medicamentos que Eder tomava contra o Alzheimer e prescreveu amantadina, cuja função é estimular os receptores de dopamina no cérebro. A alteração já garantiu uma melhora. Eder voltou a se alimentar, anda com mais firmeza, parece mais atento — mas ainda é um espelho quase sem distorções do que a medicina descreve como resultados comportamentais da encefalopatia traumática crônica.
Os estudos de funcionalidade e das estruturas do cérebro de Eder se completam com a observação do cotidiano do grande campeão. Seu universo está em acelerada contração. Ele apenas balbucia palavras e frases. Sua janela para o exterior são os desenhos, hábito que vem da infância e ele nunca abandonou. Os punhos que batiam tinham a paradoxal delicadeza de lidar com pincéis e canetas nanquim. Um mergulho na caixa de desenhos de Eder mostra o reflexo da doença sobre seu traço — a complexidade de quem aprendeu a desenhar com Clóvis Graciano e Aldemir Martins hoje transformada em imagens de tons pastel, simétricas, quase ingênuas. O desenho do boxeador confiante e soberano no punching ball desta reportagem foi rabiscado em 15 de abril de 1962, pouco tempo depois da luta em que derrotou o irlandês Johnny Caldwell. Foi nesse combate que o brasileiro unificou os títulos da Associação Mundial de Boxe e do Conselho Mundial de Boxe. A mãe que protege o filho é de 28 de maio de 1966, três dias antes da segunda derrota para o japonês Harada, em Tóquio, quando Eder vivia o drama da reconquista do título e parecia pedir um colo afável. O casario colorido de 2013 já é resultado do cérebro atingido.
Desenhar é uma tarefa cerebral complexa. Utiliza-se o lobo parietal para habilidades visoconstrutivas; o hipocampo para o resgate das memórias que servem de inspiração; e o lobo frontal para planejar e executar o desenho com requinte. Diz Renato Anghinah: “Eder ainda consegue desenhar, pois seu lobo parietal não está danificado. Os traços estão menos elaborados, porém, porque há perda das funções executivas, área do lobo frontal”. O pintor americano de origem holandesa Willem De Kooning deixou o registro pictórico dos efeitos do Alzheimer sobre a capacidade expressiva do artista.
VEJA mostrou a Eder Jofre uma série de fotografias históricas de sua carreira. Ele consegue dizer o nome do adversário da luta que antecedeu a disputa pelo título mundial, contra o mexicano Joe Medel, em Los Angeles, em 18 de agosto de 1960, um combate descrito como uma enciclopédia de todos os recursos do boxe. Mas Eder não se recorda de ter trocado luvas com o japonês Harada, para quem perdeu o cinturão em 17 de maio de 1965. Também não aparece no filme mental que projeta de sua própria vida a noite do segundo título mundial, contra o cubano José Legrá, já como peso-pena, em Brasília, em 5 de maio de 1973. No entanto, confrontado com uma foto da família na escada do avião que os levaria, em novembro de 1960, para Los Angeles, em busca do título mundial contra o mexicano Eloy Sanchez, recita o nome de um por um, pausadamente. “Eu, meu irmão Dogalberto, a Cidinha, meu irmão Mauro, minha mãe, Angelina, meu pai, Aristides, e o Katznelson (o empresário)”. E para onde vocês estavam indo? “Não sei.”
Quem o conheceu no auge bem que poderia tomar esses vácuos produzidos pelas alterações neurológicas por brincadeiras. Quantas vezes ele não respondeu a perguntas de respostas óbvias apenas com um “caramba” cheio de ironia, traço que herdou dos tios, do clã Zumbano, introdutores do boxe no Brasil. Angelina Zumbano, mãe de Eder, casou-se com o argentino Kid Jofre, pai, treinador e confidente do campeão, com quem ele — que segue a religião espírita — dizia conversar mesmo depois de morto. O humor do campeão tinha a pureza cortante de seus golpes no ringue. Quando lhe pediam à mesa de jantar que falasse sério, ele dizia: “Sério”. Diante de uma máquina fotográfica: “Essa foto vai ser colorida? Espera um pouco, preciso pôr perfume, caramba!”. Não se sabe bem em que recôndita região cerebral o humor de Eder se escondeu, mas ele dá o ar de sua graça. Apresentado a um álbum amarelado de fotos da família, dos anos 40, frágil, Eder ergue o lado direito do lábio superior, tique recorrente, e diz: “Vixe, isso é antigo”. Induzido a puxar pela memória, a buscar o passado, evidentemente incomodado com o esforço, pede desculpas e, gentil, põe a mão na garganta para sinalizar que está com a voz rouca. Para de falar.
É generosa a atitude dos filhos em permitir que o cérebro do pai seja esmiuçado. Exige coragem e desprendimento também saber que do diagnóstico dos médicos poderia vir, como veio, uma inequívoca condenação do boxe pelos riscos que oferece à saúde do cérebro de seus praticantes. Essa realidade tão óbvia sempre foi mascarada no mundo das lutas. Em 1983, a revista americana Sports Illustrated convenceu o grande campeão dos pesados Muhammad Ali a se submeter a exames neurológicos. Os resultados nunca foram publicados e, portanto, não se sabe se eles desmentiriam a versão oficial de que Ali sofre da doença de Parkinson, distúrbio degenerativo resultante da morte das células cerebrais produtoras de dopamina e cuja relação causal com o boxe é mais difícil de estabelecer.
“Meu pai teria feito tudo o que fez na vida do mesmo jeito, ainda que tivesse sabido das consequências para sua saúde que esses exames demonstram”, diz Marcel Jofre. Marcel já se comprometeu com os médicos a, assim como a família de Bellini, doar o cérebro de Eder quando a hora chegar. Da investigação do cérebro de Eder pode, então, surgir seu derradeiro nocaute, o que vai derrubar a malignidade do boxe, preservando sua arte. Eder pode fornecer o argumento decisivo para a proposta que vem ganhando força, a de que os boxeadores profissionais passem a lutar com protetor de cabeça, que era obrigatório nas disputas olímpicas, mas também foi abandonado. A elegância de garça da esgrima está nos leves toques, e não em ver contendores estraçalhados por golpes de espada, florete e sabre. A beleza do boxe não pode residir em produzir danos permanentes à saúde. O boxe com proteção pode ter a mistura de inocência e força que Nelson Rodrigues viu no fenomenal pugilista brasileiro: “Eder tem, mesmo no ringue, a candura de menino que ainda não disse o primeiro palavrão”.
*Com Natália Cuminale