‘Vai passar’, por J. R. Guzzo
Publicado na edição impressa de VEJA J. R. GUZZO Nunca se viu até hoje o caso de dois cachorros que tenham trocado, de livre e espontânea vontade, o osso de um pelo osso do outro, ensina Adam Smith. Ninguém como o velho Smith para dizer certas verdades. No caso, ele falava do livre-comércio ─ uma […]
Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
Nunca se viu até hoje o caso de dois cachorros que tenham trocado, de livre e espontânea vontade, o osso de um pelo osso do outro, ensina Adam Smith. Ninguém como o velho Smith para dizer certas verdades. No caso, ele falava do livre-comércio ─ uma característica exclusiva do ser humano, assim como a palavra, a escrita e outras coisas que distinguem os homens dos animais. O pensador escocês que informou ao mundo, mais de 200 anos atrás, que o capitalismo existia, explicou como funcionava e demonstrou por que era indispensável para a evolução racional da sociedade, ia direto ao ponto em matéria de economia ─ mas sua clareza é a mesma quando transportada para a política. Nenhum partido, em nenhuma democracia do mundo, entra numa eleição para perder. Não quer trocar seu osso com ninguém, quando está no governo ─ e quando está fora não quer trocar nada, e sim tirar o osso de quem está dentro. O Brasil, é claro, vive segundo essa mesma regra. Mas a história, aqui, é muito mais quente, porque o osso em disputa é muito maior. Perder uma eleição lá fora é ruim ─ mas no fim é apenas isso, uma derrota. Aqui não. Se o PT perder a eleição presidencial de 2014, seja com a presidente Dilma Rousseff ou com o ex-presidente Lula, vai haver um terremoto na vida pessoal de dezenas de milhares de pessoas, possivelmente muito mais, a começar por seus bolsos. No caso, iriam embora o governo, os anéis e os dedos.
É disso, e só disso, que se trata. Fala-se uma enormidade, e cada vez mais, sobre o “quadro sucessório”; todo mundo “trabalha com a hipótese” de alguma coisa. (É uma das curiosidades da nossa atual linguagem política: aboliu-se o verbo “pensar”. Hoje o indivíduo não pensa ─ só “trabalha com a hipótese”.) Mas o que está valendo mesmo, no jogo a dinheiro, é a corrida de uma multidão de gente para salvar o próprio couro. Até dois ou três meses atrás, esse era um problema inexistente: o governo tinha certeza de que Dilma “estava eleita já no primeiro turno”. Mas a coisa mudou de repente, e o medo de perder invadiu o PT e a base aliada. Já apareceu um “volta Lula”, tramado no escuro por ele mesmo, para desmanchar a candidatura de Dilma à reeleição; e os aliados, assim que sentiram o primeiro cheirinho de pólvora no ar, voltaram ao bazar de compra e venda do seu apoio.
As perdas materiais, aí, envolvem gente que não acaba mais. Quantos serão? É difícil saber ao certo. Entram, logo de cara, além dos 39 ministros que pretendem estar no próximo governo, perto de 25 000 funcionários de “confiança” nomeados livremente pelo presidente e sua turma ─ aos quais se devem somar os empregos que podem dar nas empresas estatais. Muitos desses cargos são coisa de cachorro grande: a prova mais recente foi a batalha que o senador Fernando Collor (“aliado”) travou para substituir os ocupantes de dois empregos na Petrobras por gente sua. Brigou e levou: Dilma, que já não tinha escolhido os dois que estavam lá, também não escolheu os seus substitutos, em mais um belo retrato de como funciona seu governo. Some-se a isso a grossa maioria dos 594 deputados federais e senadores, e a miudeza política que sobrevive nos subúrbios mais distantes do poder central. Não se pode esquecer, é claro, todo o mundo multibilionário e opaco dos fundos de pensão gerenciados pelo PT e chefes sindicais ─ adicione-se a eles, aliás, a nata do mundo sindical petista. Multiplique-se, enfim, tudo isso pelo número de parentes, amigos, amantes, sócios etc. dessa turma, e já estamos falando numa quantidade de gente na casa dos seis algarismos. O leitor fica convidado a fazer sua conta pessoal.
Falta acrescentar, ainda, os privilégios dos donos do poder, e que valem tanto quanto dinheiro sonante. Um caso, entre milhares, ajuda a entender com perfeita clareza por que é indispensável, para o PT e a base aliada, manter o governo em 2014. Trata-se da última obra que o governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, colocou em sua biografia. Cabral, que há anos vive ajoelhado diante de Lula, mandou buscar seu cachorro “Juquinha”, em sua casa de praia em Mangaratiba, num Agusta AW109 Grand New que faz parte da frota de sete helicópteros do governo estadual, mantidos ao custo estimado de 10 milhões de reais por ano. República? Está mais para corte de Maria Antonieta tropical. Ao povão do Rio, nessa fantasia, fica reservado o papel dos barões famintos e napoleões retintos que desfilam no samba Vai Passar, de Chico Buarque.
Talvez esteja aí, no fundo, o problema real da política brasileira de hoje. Se o PT cair fora, quem vai mandar o helicóptero buscar “Juquinha” em Mangaratiba?