PUBLICADO NA EDIÇÃO IMPRESSA DE VEJA
ROBSON BONIN
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, trabalha para concluir neste mês um dos ritos derradeiros da maior batalha já encampada por ele no Judiciário. A publicação do acórdão do julgamento do mensalão vai consumar as penas dos condenados, abrir caminho para os recursos finais da defesa e, no last act — expressão usada por Barbosa no julgamento —, colocar atrás das grades os mensaleiros. Será o fim do maior julgamento da história e o começo de uma nova, e não menos desafiadora, empreitada para Barbosa.
No fim do ano passado, ao assumir a presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pelo controle externo do Poder Judiciário comandado cumulativamente pelo presidente do STF, Barbosa elegeu como prioridade de sua gestão encontrar uma fórmula para coibir o que ele considera uma das mais nocivas práticas ainda toleradas nos tribunais brasileiros — a advocacia de filhos, cônjuges e toda sorte de parentes de magistrados.
A atividade de familiares de magistrados, na avaliação de Barbosa, “fere o princípio do equilíbrio de forças que deve haver no processo judicial” e divide os advogados em duas classes: os que têm acesso privilegiado — podendo beneficiar clientes por causa disso — e os comuns, que não possuem os laços de sangue para favorecê-los. “Filhos, mulheres, sobrinhos de juízes são muito acionados por seus clientes pelo fato de serem parentes. Não é pela qualidade técnica do seu trabalho. Sou visceralmente contra isso”, disse Barbosa.
Tratado como tabu, o filhotismo nos tribunais já esteve na mira de outro integrante do CNJ no passado. Ex-corregedora do órgão, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Eliana Calmon, foi uma das primeiras a declarar guerra à prática. O problema, segundo ela, não está na atuação formal dos familiares nos processos. Para esses casos, a legislação já conta com mecanismos para coibir abusos. O problema está nas relações que acontecem fora do processo, quando os parentes usam a proximidade com um juiz para fazer lobby em favor de um cliente.
Conhecida pelo rigor de suas palavras, Eliana Calmon não conseguiu encontrar uma solução para o problema durante os dois anos em que esteve no conselho, o que demonstra a complexidade do assunto. O próprio Barbosa, apesar de ser o comandante do Supremo, não escapará de constrangimentos. O atual corregedor do CNJ, ministro Francisco Falcão, por exemplo, tem dois filhos que atuam como advogados em processos que tramitam no STJ, onde Falcão também trabalha.
Ele é, portanto, um caso que se encaixa na prática condenada por Barbosa? A questão não é tão simples assim. Filhos e parentes de magistrados que advogam não podem ser colocados em suspeição apenas pela certidão de nascimento. O lobby familiar existe, é restrito a uma minoria na Justiça brasileira e, por esse motivo, deve ser tratado com todo o cuidado, tanto que o próprio Barbosa ainda não revelou seus planos para atacar o problema.
A ministra Eliana Calmon conta que os parentes-lobistas costumam agir com discrição na corte. Eles não advogam oficialmente nos processos, mas estão presentes quase diariamente nos corredores do tribunal: “Eles vendem a possibilidade de influenciar nos processos aqui dentro”. A ministra gosta de lembrar que certa vez expulsou do gabinete o filho de um ex-colega já aposentado. “Ele veio com outro advogado me chamando de ‘tia Eliana’. Não sabia nada da causa”. Os filhos dos magistrados chamam atenção não só pela desenvoltura, mas também, segundo a ministra, pelos grandes clientes que conquistam — bancos, empreiteiras, empresas de telefonia — e pelo sucesso financeiro. “Os meninos aparecem de BMW, de Mercedes-Benz, morando em casas luxuosas. Eu sou juíza há 34 anos e penei para ter o meu apartamento”, diz Eliana Calmon.
Nas últimas semanas, VEJA ouviu juristas das maiores bancas de advocacia do país. Todos só aceitaram falar sob a condição do anonimato. O resultado mostra como pode ser complexa, ou até mesmo impossível, a missão de tentar resolver a questão. Se, por um lado, a advocacia de parentes pode comprometer o equilíbrio de forças nos julgamentos, por outro, um familiar de juiz não pode ter o seu direito de advogar limitado simplesmente pela suspeita de que será beneficiado.
A solução mais próxima para tentar reduzir o problema — todos os juristas ouvidos foram unânimes em dizer que não há uma solução definitiva — será conscientizar magistrados, advogados e os próprios clientes que contratam familiares a denunciar os abusos sempre que forem confrontados.
Mas, enquanto o assunto continuar sendo um tabu nos tribunais, a solução permanecerá no campo dos discursos.