J.R. Guzzo, publicado na edição impressa da EXAME
Os personagens que mandam na vida pública do Brasil de hoje, muitos dos quais não receberam um único voto para exercerem os cargos que ocupam, estão envolvidos até a cabeça, neste momento, numa experiência sem precedentes: governar o país através de decretos judiciários, burocráticos e pessoais, estes últimos baixados basicamente por indivíduos cujo maior mérito é ter acesso ao Diário Oficial da União. Esqueçam os Três Poderes, como está previsto na Constituição, e a obrigatória independência entre eles. Para que isso? O Brasil já está tentando há anos seguir esta regra, e obviamente não deu certo. Ruim por ruim, que tal experimentar um sistema em que as autoridades mais altas, sem maior entendimento entre si próprias, saem por aí tomando as decisões que lhes dão na telha ─ e ficam olhando para ver se o resto do país obedece? Se obedecer, beleza: mais uma vez “as instituições funcionaram”. Se não obedecer, paciência: tenta-se alguma outra coisa, ou deixa-se tudo mais ou menos como está. É uma espécie de anarquia aplicada, algo aparentemente inédito na história das nações. Os anarquistas, no caso, são os próprios governantes agarrados à suas cadeiras nos Três Poderes, boa parte deles em cargos “vitalícios”,“intransferíveis” e “irremovíveis” ─ ou seja, em português claro, o sujeito só sai de lá morto, ou praticamente isso. Têm outra particularidade extraordinária: façam o que fizerem, seus atos não estão sujeitos à apreciação ou revisão de ninguém atualmente vivo sobre a superfície da Terra.
Cabe tudo nessa anarquia. O doutor Zé, ou a doutora Mané, vão decidir na prática, conforme a roda da fortuna, se o ex-presidente Lula cumpre ou não cumpre a pena de cadeia a que foi legalmente condenado (por nove juízes diferentes, até agora). Outros, também ao acaso, resolvem se o Código Florestal, em vigor há seis anos, vale ou não vale. Podem exigir de uma empresa a apresentação do CPF do compositor Johannes Brahms, sepultado em Viena há 121 anos, ou eliminar o brasão da República nas capas dos passaportes. Decidem, cada um segundo o que acha “mais certo” na sua própria cabeça, sobre o envio de tropas do Exército ao Rio de Janeiro, a legalidade do ovo frito ou a precessão dos equinócios. Levam-se psicoticamente a sério. Acreditam que governam o Brasil, quando apenas mandam nele; imaginam-se garantidores da lei, quando garantem apenas o caos. O mais notável é que não pensam nem agem numa mesma direção ─ cada um, ou cada grupo, é um governo no seu terreiro, e a toda hora estão metidos em horrendas brigas de rua entre si. Se houvesse algum nexo entre o que fazem, isso aqui, pelo menos, funcionaria como uma ditadura ─ que sempre tem a vantagem de tomar decisões previsíveis e seguir a uma lógica. Assim, do jeito que está, criaram um angu que não é nada.
A democracia brasileira, mais de trinta anos após o último governo militar, deu errado. Caiu rapidamente no abismo que os políticos e as elites de todos os tipos, com o apoio da “sociedade”, começaram a cavar já em 1988, com a nova “Constituição Cidadã” ─ seguramente uma das mais estúpidas jamais criadas em qualquer país do mundo, uma espécie de pacto de suicídio coletivo capaz de travar o funcionamento das mais poderosas, ricas e eficazes nações que já se organizaram na história da humanidade. Com exceção dos artigos fundamentais para as democracias, que já estão há mais de dois séculos escritos em qualquer constituição que se preze, e portanto não conferem mérito nenhum à Assembleia Constituinte de 88, quase todo o restante é um monumento ao triunfo do interesse particular sobre o interesse da maioria. Cada um enfiou lá o que quis, e todos tiraram uma fatia do pernil para si próprios. Some-se os poderes frequentemente insanos que foram atribuídos a juízes, desembargadores, ministros, promotores, procuradores, ouvidores, mais tribos inteiras de barões da burocracia ─ e eis aí, prontinha, uma receita infalível para o fracasso de qualquer empreitada humana.