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Augusto Nunes

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Darel Valença Lins (09/12/1924 – 7/12/2017)

Sou ilustrador, sempre fui, de jornais e revistas, e muitas vezes perdi o emprego por ser um artista que se liga no que há de subjetivo no livro

Por Augusto Nunes Atualizado em 9 dez 2017, 13h13 - Publicado em 9 dez 2017, 07h14
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  • [Depoimento, inédito, ao editor José Mario Pereira em 25 de abril de 2012]

    Comecei a trabalhar com 13 anos, fazendo desenhos técnicos, de máquinas e de topografia, na Usina Catende, no interior de Pernambuco. Ao me mudar para o Recife, na condição de funcionário público do DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), frequentei a Escola de Belas Artes, onde estudei pintura e arquitetura. Quando fui transferido para o Rio de Janeiro em 1946, com 19 anos, minha função principal era fazer desenhos em perspectiva dos projetos em andamento no DNOS. Um dia sai para um lanche com colegas de trabalho, e resolvi abandonar o emprego, porque decidira que desejava mesmo era ser artista. Ato contínuo, fui estudar gravura em metal com Henrique Oswald. Desde então mais de sessenta anos se passaram…

    Na década de 50, era hábito dos artistas e escritores – Lúcio Cardoso, Iberê Camargo, Portinari, Pancetti, Joaquim Tenreiro e um grande amigo esquecido que, na minha opinião, foi o maior cenógrafo do Brasil: Sansão Castelo Branco – fazer ponto no Vermelhinho, um bar que funcionava próximo à ABI, então local de encontro dos artistas e intelectuais. Certa noite, enquanto esperávamos o trânsito melhorar para pegarmos o lotação que nos levaria para casa, o Iberê Camargo veio me pedir para eu assinar uma petição endereçada a um certo ministro*, de quem não lembro o nome, solicitando  autorização para trazer tintas e papéis da França.

    Como naquela época eu me encontrava sem emprego e sem dinheiro, e sabendo que era hábito do Iberê fabricar essas petições das quais o maior beneficiário sempre era ele, e não a comunidade artística, me irritei e disse que não ia assinar nada, que ele era um egocêntrico, que só estava preocupado consigo mesmo e não com a continuidade do trabalho dos artistas com quem convivia.

    Iberê ficou gauchamente irritado, e por pouco não saímos na porrada. Foi uma briga feia, ficamos um bom tempo estremecidos, mas aí aconteceu o seguinte: o irmão do Portinari, o Loyo – diretor técnico da Confraria dos Cem Bibliófilos do Brasil, que sabia da minha briga com o Iberê e de gravura em metal não entendia nada – me ofereceu um spaghetti, ocasião em que perguntou: “Darel, você quer ser diretor técnico da Confraria?”

    Respondi que sim, e que o convite chegava em boa hora, pois estava sem emprego. Ele disse que confirmava minha indicação contanto que eu resolvesse uma questão: o Iberê estava fazendo um livro para a Confraria, mas vinha criando muitos problemas. “O emprego é seu se catimbozar o trabalho do Iberê, impedindo-o de fazer esse livro”, insistiu o Loyo.

    Garanti que resolveria a questão, e ele então falou com o Raymundo Castro Maya, fundador da Confraria. Minha primeira providência na nova função foi telefonar para o Iberê, comunicar-lhe a minha nomeação e perguntar qual a dificuldade que vinha tendo para finalizar o trabalho para o qual fora convidado. Ele me contou que a demora se devia ao fato de estar usando a técnica de vernis mou (verniz mole) para estampar as gravuras em metal que iriam ilustrar o livro O rebelde, de Inglês de Sousa.

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    Afirmei-lhe que o nosso problema pessoal ficava à parte, e que tinha grande interesse em colaborar com ele nesse trabalho, já que se tratava de uma técnica complicada que nem mesmo eu, um gravador experiente, dominava por completo. Deixei claro, portanto, que nosso desentendimento era coisa do passado, e que agora o que interessava era lhe dar as condições necessárias para finalizar as ilustrações.

    Iberê ficou verdadeiramente comovido com o meu gesto, animou-se e concluiu a tarefa. Depois desse episódio voltamos às boas, e ele se tornou meu amigo pelo resto da vida, de tal modo que, quando encontrava comigo na rua, me abraçava e às vezes até chorava. Todo sábado eu e um grupo de amigos, entre eles Maria Leontina e Inimá de Paula, íamos ao seu ateliê tomar chimarrão e colocar a conversa em dia.

    Bem, voltando ao Vermelhinho… Talvez o mais interessante a contar é que, por volta de 1953, me tornei grande amigo do Lúcio Cardoso, que estava escrevendo, à mão, o romance Crônica da casa assassinada. Quando tomávamos o lotação, era hábito dele, durante a viagem, ler para mim os capítulos que havia finalizado, e, como éramos ambos admiradores de Dostoievski, Gogol e toda a literatura russa, muitas vezes nossa conversa descambava para as afinidades existentes entre os personagens de Dostoievski e os que ele vinha criando.

    Lúcio era então considerado o melhor tradutor de francês do Brasil, apesar de só ter cursado até o terceiro ano primário. Embora fosse funcionário público, lotado em não sei qual repartição, e também irmão do deputado Adauto Lúcio Cardoso, o que realmente o sustentava era o dinheiro ganho como tradutor, pois seus livros vendiam pouco. Ele morava então na Lagoa, com a mãe e a irmã, Helena. Depois que a mãe morreu, e ele ficou doente por quase sete anos, quem cuidou dele foi a irmã, seu anjo da guarda.

    Conversávamos muito sobre as nossas leituras, particularmente sobre Dostoievski. Acho que foi devido a isso que Lúcio teve a ideia de me aproximar de José Olympio, pois estava informado do seu projeto de editar o russo com ilustrações. Lúcio tinha um senso crítico muito aguçado. Lembro que, apesar de sua admiração por Guimarães Rosa, não aceitava o final de Grande sertão: veredas, quando se descobre que Diadorim é mulher. Para Lúcio, que não escondia a homossexualidade, o Rosa não tivera coragem de assumir a personagem Riobaldo como homossexual. Então dizia que no livro que escrevia, a Crônica, não se deixaria domar por preconceito nenhum; o fato é que também não teve coragem de tratar a fundo o problema.

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    Ele costumava me dizer: “Darel, o meu livro vai terminar com o filho tendo uma relação sexual com a mãe, velha e cancerosa”, mas acho que teve de amenizar essa situação. Bebia muito; quando sofreu o segundo derrame, ficou mudo, hemiplégico, sem capacidade para escrever, e então passou a desenhar com a mão esquerda, com resultados muito bons – tanto que chegou a fazer uma exposição de pinturas e desenhos. Mas nunca falamos a respeito dessa sua nova forma de expressão, à qual foi levado pelo desespero de não conseguir mais escrever como antes.

    Seus últimos anos foram como artista plástico. Uma vez fui visitá-lo e, vendo que pintava em pastel, e que o desenho parecia bom, perguntei: “O que você está fazendo?” Ele ouvia bem mas não falava, e me respondeu por escrito: “Darel, eu bebi uma rua de magnólia”.  O que significava essa resposta?  O pai dele tinha sido rico, e deixara um bom dinheiro. Logo percebi que o Lúcio estava se referindo a essa herança paterna que ajudara a dilapidar. Ele remoía as lembranças da infância, pois vivera numa rua onde havia muitas flores. Ou seja, subtendi aí que as paisagens que desenhava eram as de Minas Gerais que guardara na memória.

    Ao concluir a Crônica, Lúcio Cardoso me levou ao José Olympio e acertou para que eu desenhasse a capa do livro, publicado em 1959, quando me encontrava na Europa. Antes, em 1957, já fizera um trabalho para a editora – a capa e as ilustrações do livro de contos Terno de Reis, do Ricardo Ramos, filho do Graciliano – mas só vim a conhecer o dono pessoalmente quando Lúcio me levou até ele.

    Fiquei envaidecido com a atenção que J. O. dispensou ao jovem artista que então eu era, e sempre que lembro desse nosso primeiro encontro me comovo. O fato é que de imediato surgiu entre nós uma mútua simpatia. Lembro bem da nossa primeira conversa, da sua figura risonha, roliça, sentado à vontade numa imensa poltrona. Ele já era então o maior editor da literatura brasileira, íntimo dos mais poderosos da República, mas mesmo assim tratou-me como a um amigo próximo.

    Feliz com o tratamento que recebi de J. O., passei a frequentar a editora, que então funcionava na Praça 15, e logo comecei a participar dos almoços e encontros que promovia. Tornei-me amigo dele naquela ocasião, e assim permaneci até sua morte, em maio de 1990. Era hábito de José Olympio receber, depois das 5 da tarde, escritores, artistas, jornalistas e pessoas ligadas à política para trocar ideias. Ele era expansivo, conversava sobre tudo, e irradiava – pelo menos para mim – um sentimento de generosidade. Sua atenção comigo foi algo para mim inesperado, porque eu era um artista iniciante, e ele já o grande editor do Brasil.

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    Eu lhe tinha respeito e admiração, e me parecia que ele retribuía esses sentimentos por eu ser, provavelmente, a pessoa mais jovem a participar das reuniões. Virei assíduo frequentador da “Casa”, como muitos se referiam à editora, e o nosso convívio só foi interrompido quando viajei, em 1958, para a Europa. Na volta retomamos o contato, e foi aí que recebi o convite para participar, como ilustrador, da edição que ele há muito preparava da obra de Dostoievski.

    Ilustrei três obras do gênio russo: O vilarejo de Stiepantchikov e seus habitantes (27), “Polzonovski” (seis) e “Um coração fraco” (oito), todos traduzidos por Olívia Krähenbühl. Da primeira eu tinha conhecimento pelos comentários do Lúcio Cardoso, de quem ouvi várias vezes: “Essa novela está cobrando, há tempos, uma adaptação para teatro e cinema”. O conto “Polzonovski” me surpreendeu pelo fato de o personagem principal, em meio a bebedeiras intermitentes, dizer coisas profundas, que impressionam.

    O Dostoievski com as minhas ilustrações saiu pela primeira vez em 1960, mais foi reeditado dois anos depois, agora na coleção encadernada, em dez volumes, empreendimento que acabou por se tornar um marco na história da arte gráfica no país, e hoje é uma raridade. Na novela O vilarejo de Stepantchikov e seus habitantes, escrita ainda na Sibéria, admiro particularmente o cômico de alguns personagens. E quero deixar registrado que me diverti muito fazendo as ilustrações que agora se reeditam.

    Há nesse livro pelo menos três tipos a mencionar: o inesquecível farsante Fomá Opinskin, que muitos críticos consideram um irmão dos grandes personagens de Molière, Dickens e Gogol; o coronel Rostânov, dono da propriedade rural e encarnação de um autêntico cristão; e a afortunada herdeira Tatiana Ivânovna. Mas seria redutor destacar apenas os aspectos farsescos, pois há nele também cenas de tristeza e que nos incomodam o coração. Precisamos ter sempre em mente a declaração de Dostoievski de que o escreveu “com sua carne e seu sangue”.

    Posso testemunhar que José Olympio era generoso nos pagamentos, mas em sua editora não era hábito dar recibo: tudo ali funcionava na base da amizade e da confiança. Naquela época, porém, os ilustradores não respeitavam o próprio trabalho; se sentiam mais envaidecidos em fazer o livro do que em receber pagamento. Com José Olympio era diferente: ele estimulava seus colaboradores e se preocupava em ver todos contentes. Pagava bem, embora se reservasse o direito de ficar com os originais das ilustrações, ainda que elas não fossem assinadas, pois não era hábito assinar ilustração. Mas isso são detalhes técnicos…

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    O mais importante a assinalar são pequenos episódios que ocorreram na minha convivência com J. O. Por exemplo: ele me incumbiu de fazer uma capa para Guimarães Rosa; fui procurar o escritor no Itamaraty, e tivemos uma conversa nos corredores do edifício sobre o que eu estava pretendendo fazer. Então Rosa, no seu português impecável, passou a me dizer o que queria: “Darel, eu quero que você desenhe a varanda de uma fazenda de Minas Gerais, e nela coloque uma moça muito bonita, loura de olhos azuis, mirando perdidamente o pôr do sol”. Ouvi aquelas indicações tão precisas e minuciosas, me despedi, e voltei ao editor para explicar minha dificuldade em trabalhar para alguém que já sabia, de forma tão categórica, o que desejava ver na capa de seu livro. Ele riu, entendeu, e prometeu me chamar assim que tivesse uma nova tarefa a oferecer.

    Quando trabalho como ilustrador literário, me ligo mais ao que está nas entrelinhas da obra, na alma do artista, e não numa “situação em ato”, de que vou dar um exemplo: “Fulano entrou, sentou-se na mesa e tomou um xícara de café. O ambiente era penumbroso, etc. etc.”. Eu busco sempre ler o que se encontra nas camadas mais profundas do texto. No meu entender, o ilustrador não deve procurar competir com o fotógrafo, mas se deixar contaminar pelo texto de tal modo que consiga alcançar aos níveis onde o leitor comum nem sempre consegue chegar.

    Não sou do tipo que trabalha com “situação em ato”, fiel ao que o escritor deixou na superfície do texto; sou ilustrador, sempre fui, de jornais e revistas, e muitas vezes perdi o emprego por ser um artista que se liga no que há de subjetivo no livro; por exemplo: gosto muito do que fiz para São Bernardo, de Graciliano Ramos, porque todas as ilustrações ali procuram captar o conflito do protagonista, Paulo Honório, com sua mulher. Nos meus desenhos não aparece uma palmeira, um boi de canga, nada que identifique o Nordeste… Fiquei ligado mesmo no relacionamento do casal.

    Fiz mais três capas de romances para a editora José Olympio: Dia do Juízo, de Rosário Fusco (1961), O amigo Lourenço, de Permínio Asfora (1962), e As dores do mundo, de Octavio de Faria (1963). Tenho uma história divertida sobre o Fusco, mineiro de Cataguazes, muito talentoso, mas meio doidão. Um dia, aceitei convite para um jantar, e lá a dona da casa, mulher muito bonita e fogosa, começou a me paquerar. No final da noite, quando só restavam na sala algumas amigas íntimas, ela anunciou: “Hoje o Darel dorme aqui”. Em coro as outras perguntaram, já de pileque: “E o que você pretende fazer com ele?”. Ela deu uma gargalhada: “Pretendo fazer amor a noite toda!”. Entrei surpreso e envaidecido com a disposição da moça, dormi lá.

    Esse nosso caso amoroso, com alguma intermitência, durou um bom tempo. Na verdade, acabou no dia em que a encontrei na porta do hotel Copacabana Palace, de óculos escuros, e percebi que estava com um olho roxo. Perguntei o que tinha acontecido, e quase caí para trás: ela me contou que há anos era amante do Rosário Fusco, e que ele desconfiara que ela o estava traindo com outro, ou seja, comigo. Nada sabia desse romance dos dois, e, como tinha admiração pela obra do Fusco, tratei de pôr fim àquela história antes que ele descobrisse com quem a moça o corneava.

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    Outro episódio da minha convivência com José Olympio, e que diz muito do respeito que ele tinha por meu trabalho, foi a encomenda para ilustrar a obra de José Lins do Rego. Ele estava esperando, suponho, que eu funcionasse na linha do que chamo “situação em ato”: o menino de engenho feliz, porteiras de fazendas, essas coisas. Então disse ao Zé Olympio que não era o artista ideal para esse trabalho. “Por quê, Darel?”, me perguntou.  “Porque o Zé Lins não me fala ao lápis… Não que o considere um mau escritor, mas não saberia encontrar nos livros dele as questões subjetivas que encontro em Graciliano Ramos, Tolstoi, Dostoievski e Gogol”.

    Acho que deve haver afinidade do ilustrador com o texto. Doré, por exemplo, fez magníficas ilustrações, gravadas por Pizan, mas são o que chamo de “situação em ato”. Era comum na época pedir esse tipo de ilustração. As do Doré são notáveis mas não conseguiria fazê-las por uma questão de temperamento. Geralmente, antes de ilustrar, leio com muita atenção o texto sem fazer notas, pois detesto a lógica e não a uso enquanto leio, só deixo agir meus sentimentos. Para dar um exemplo de como funciono na relação com um escritor cuja obra devo ilustrar, lembro aqui Herberto Sales, que, quando dirigia a editora O Cruzeiro, me encomendou ilustrações para uma nova edição do seu romance Cascalho. Li o livro e fiz um monte de desenhos.

    Como era muito amigo do Goeldi, tinha por costume mostrar tudo o que fazia a ele, que era muito rigoroso e havia conhecido o Alfred Kubin, “o papa do terror”, artista de quem eu tinha uma influência de epiderme. Criei não sei quantas ilustrações para o livro do Herberto, umas 30 talvez – geralmente fazia 60 desenhos – e, como Goeldi era meu orientador, antes de entregar um trabalho eu lhe mostrava para ouvir sua opinião. Ao ver os desenhos, ele começou a examinar um a um, e dizia: “Isto é Kubin, isto é Darel, isto é Kubin, isto é Darel…”; e assim foi até o fim, selecionando o que achava influenciado por Kubin, e o que era de minha lavra. Depois, com aquele seu modo peculiar de se expressar, sentenciou: “Darel, você não precisa mais do Kubin… Seja você mesmo!” Ouvi tudo calado, recolhi as ilustrações e voltei para o ateliê, onde rasguei várias e refiz todo o trabalho. Acho que foi a partir desse episódio que ganhei autonomia em relação ao grande artista suíço e passei a ter a minha própria caligrafia.

    Sou rigoroso e exigente comigo mesmo, como ilustrador, pintor, litógrafo; sempre procedo dessa maneira, e tenho de dizer que devo muito a Goeldi e Lívio Abramo no aperfeiçoamento do meu modo de ser como artista, na procura incessante da expressão mais autêntica da minha alma. As ilustrações que fiz para Dostoievski, depois desse episódio do Goeldi, foram as primeiras onde eu me inaugurava como o ilustrador Darel.

    Fui grande amigo do Di Cavalcanti, que era muito divertido e maledicente. Um dia perguntaram sobre o valor de alguns de seus quadros e ele comentou: “Eles valem o dia da minha fome”. Já eu diria que só ilustro quanto estou com vontade. No que se refere a Dostoievski, trabalhei do seguinte modo: a editora me forneceu cópia das traduções, e então as li e reli enquanto desenhava. Em geral permanecia no ateliê no período da manhã, mas para lá voltava sempre que me ocorria uma ideia.

    Para mim é irrelevante o que ocorre na periferia do que um Joyce ou um Kafka descrevem. A propósito, acho São Bernardo muito semelhante – não na forma de escrever, evidentemente – a um dos contos de Os dublinenses de Joyce, o último deles, “The dead” (Os mortos), levado ao cinema por John Huston. Os dois monólogos finais se parecem, e, relendo recentemente São Bernardo, me convenci disso.

    Assim eu sou, como artista e como pessoa. Na realização de todos os meus trabalhos procuro me espelhar no comportamento de artistas como o maestro Carlos Kleiber, que fez do rigor e da precisão as balizas de sua arte. Só vou para o ateliê quando estou com vontade, ou quando a geladeira está vazia. Penso que os desenhos que porventura eu venha a fazer devem ter força para existirem independentemente do livro, por melhor que ele seja. O fato é que, na consolidação desse meu pensar, muito me ajudaram a leitura e o trabalho que realizei como ilustrador de Dostoievski para José Olympio por intermédio de Lúcio Cardoso. A ambos sou eternamente grato.

    * Posteriormente, Darel me confessou que o “certo ministro” era Oswaldo Aranha.

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