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Augusto Nunes

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Grandes Textos: ‘A vida torta de Mané Garrincha’, de Geraldo Mayrink

Publicado em VEJA em 8 de março de 1972 GERALDO MAYRINK Suas pernas formavam um arco. A esquerda, onde a deformação era mais notável, tinha 6 centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol. É inacreditável que logo no segundo treino, torto e desajeitado nos seus dezenove anos, […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 05h06 - Publicado em 26 out 2013, 09h39
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  • Publicado em VEJA em 8 de março de 1972

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    GERALDO MAYRINK

    Suas pernas formavam um arco. A esquerda, onde a deformação era mais notável, tinha 6 centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol. É inacreditável que logo no segundo treino, torto e desajeitado nos seus dezenove anos, desse meia dúzia de dribles “num tal de Nílton Santos”: para ele, entre a “enciclopédia do futebol”, pelo seu jogo prodigioso, e Pincel e Suingue, seus companheiros no Esporte Clube Pau Grande, a diferença era nenhuma. Essa é a história no seu começo.

    A lenda nasceu junto. Cresceu na Suécia em 1959 e tornou-se infinita no Chile em 1962. Esfriou na Inglaterra em 1966. Desapareceu na poeira de campos anônimos na Colômbia, Uruguai, Argentina e Itália. E reapareceu angustiadamente no Maracanã, duas semanas atrás, para 50.000 pessoas que enfrentaram a chuva e a noite para ver um jogo que normalmente seria ouvido no radinho de pilha. Suas pernas continuavam formando um arco. Outra vez, mas por outros motivos, era um milagre que jogasse futebol. Torto e desajeitado nos seus 31 anos, Mané Garrincha ganhou palmas de um povo ávido em reencontrar sua velha alegria. Essa é a lenda no seu crepúsculo.

    Entre a história e a lenda, entre o Garrincha de dezenove anos do Botafogo e o de 38 do Olaria, acentuou-se dramaticamente a linha que separa a realidade da ficção. É a mesma linha que divide quase vinte anos de glórias e humilhações, de baixezas e desprendimento, de heroísmos e ingenuidade. A mesma que fez com que Nílton Santos, um dia, fosse outro jogador que não Pincel, ou Suingue. É a linha que Mané, com seus dribles impossíveis e sua imaginação de criança, jamais respeitou, porque sequer suspeita de sua existência.

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    A sentença – O povo que correu ao Maracanã sabe, mas não quer saber, que perdeu para sempre sua alegria. Garrincha, ao longo dos anos, perdeu muito mais que o seu gênio para criar essa alegria em campo. Não está apenas mais gordo, mais lento e mais velho, mas também um pouco mais triste. Nenhum jogador brasileiro, salvo Pelé, mereceu mais o paraíso do que ele. Nenhum craque de sua categoria, especialmente Pelé, chegou tão perto do inferno. Há muitos anos – nove, no mínimo – não é mais o mesmo. Em 1962, o ano da Copa sem Pelé, em que Garrincha fez o seu papel e o do gênio ausente, um exame médico aparentemente de rotina, para apurar “umas dores muito fortes no joelho”, chegou a um laudo inquietante.

    “Eu levei Mané ao ortopedista Mário Jorge”, conta o jornalista Sandro Moreira, um dos responsáveis pela divulgação da quantidade de histórias engraçadas sobre o jogador. A sentença, no entanto, veio depois de três horas e não era cômica: “Se não parar de jogar durante três meses, estará inutilizado para o futebol.” Parecia exagerado, principalmente para o Botafogo, que precisava de Mané numa excursão, sob pena de perder 50% dos lucros. A operação foi adiada. O fim da carreira, automaticamente, antecipado.

    A decadência – Mané, o otimista, concordava com seu time. Ele já era campeão carioca pelo Botafogo duas vezes (em 1957 e 1961), ganhara o Torneio Rio-São Paulo em 1962, além das duas copas. Era a época em que o Botafogo considerava “normal, da personalidade dele”, que Garrincha fosse a Pau Grande jogar pelada com amigos. Quando o joelho começou a doer, depois de 1963, o Botafogo reclamou pelos longos períodos que Garrincha passava em tratamento. Foi operado meniscos naquele ano e, como o médico era de fora, o clube não quis pagar.

    No ano seguinte, com os jogadores “come e dorme” (os que moram no clube e treinam sem grandes esperanças de chegar a algum lugar), perdera o posto de titular e era multado em 50% do salário por se recusar a excursionar pelo interior (“Se não sou titular no Maracanã, não sou titular em nenhum outro lugar”, defendia-se ele). Já era chamado de “moleque” no próprio boletim do clube, numa nota assinada pelo diretor de propaganda. Da lenda, então, restava só a lembrança.

    Garrincha já saíra das gírias esportivas para as manchetes dos jornais de escândalo, encantados com a notícia de que ele deixara a mulher e oito filhos em Pau Grande para viver com a cantora Elza Soares (com quem casou em 1966, na embaixada da Bolívia), e as notícias sobre suas dívidas cresciam como só os rumores sabem crescer. Não bastava, assim, que Garrincha não tivesse nada. Era necessário que ele, quase derrotado, ainda ficasse devendo.

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    Em família – A triste sorte de Garrincha, nessa época, não chegou a surpreender ninguém. João Saldanha, técnico do Botafogo em 1957, ano em que Garrincha ganhou seu primeiro campeonato pelo time, lembra o episódio do “tal de Nílton Santos” como sintoma muito claro de sua alienação e do que estava para acontecer. Garrincha, diz ele, não é um poeta: “É um primitivo, um matuto, meio índio, meio selvagem, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava”.

    Esse fim de mundo, Pau Grande, não tem cinema, nem cartório, nem mais nada. Quase tudo – terrenos, empregos, pessoas – pertence à fábrica América Fabril, uma tecelagem que hoje, mal se recuperando de uma concordata, não consegue reempregar todos os seus antigos funcionários.

    Mané Garrincha nasceu ali, quarto filho de uma família numerosa e marcada pela tragédia. O pai, guarda, morreu de cirrose. Uma irmã, Teresa, morreu aos catorze anos de barriga d’água. Outra, ao cair de um caminhão num dia de festa, e o filho desta, agora com dezesseis anos, perdeu uma perna quando caiu de um trem.

    Garrincha estudou até o segundo ano primário e, como todo mundo no lugar, foi trabalhar na fábrica. Carregava carrinhos de pano enquanto sua namorada, Noir (Noir, na certidão de nascimento, e Nair, na de casamento: o escrivão corrigiu o que lhe pareceu grafia errada), já era qualificada como tecelã. Ela lhe dava cigarros, frutas, amendoim. Ele deu o troco que podia dar e os dois se casaram em 1953 (ele com dezenove, ela com dezesseis anos) já com a primeira filha encomendada. Além de Teresa, hoje com dezoito anos, viriam outras sete – para encher a casa de três quartos, sala, cozinha e banheiro, presente da fábrica quando Garrincha ganhou a primeira Copa.

    Teresa já trabalha como fiandeira, mas está de licença desde que perdeu no trabalho o dedo anular direito, há dois anos, e sofreu um trauma nervoso. Garrincha está muito presente na casa de dona Noir, agora com 36 anos, quadris largos, cabelos curtos e esticados, fala fluente de quem já se acostumou a responder perguntas, acendeu velas no dia da volta do ex-marido contra o Flamengo. “Manuel”, diz ela, “era um primor de marido, uma beleza de casa, eu tinha até empregada.”

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    Depois, porém, “viraram a cabeça dele” e desde então sua vida entrou em compasso de espera. Diz que Garrincha lhe deve 20 mil cruzeiros de pensões, que não teria pago desde que ele foi para a Europa; tem esperança de recebê-los agora, descontados dos salários de Garrincha no Olaria, 1.000 cruzeiros por mês. Sustenta-se e às filhas com o auxílio-doença de Teresa, 250 cruzeiros de pensão do governo da Guanabara (votada no governo Negrão de Lima) e 200 que o Botafogo dá, numa regularidade duvidosa, como homenagem à família do maior jogador que teve em toda a sua história.

    Saco sem fundo – Nem sempre a vida foi tão dura para dona Noir e suas filhas. Garrincha, como tantos personagens famosos e folclóricos, literalmente nadava em dinheiro em 1958, quando veio da Suécia campeão do mundo. Bebeu para valer (cachaça e batida de limão) em Pau Grande, jogou pelada com Suingue e Pincel e entrou no armazém de seu Joaquim com uma sacola de dinheiro, pagando em dólar todas as contas em atraso dos moradores de Pau Grande. Mais tarde, ao procurar um banco, levava a mala de lona que ganhara da companhia aérea e de dentro dela tirou pacotes de dinheiro amarrados com barbante e notas remendadas com esparadrapo.

    Havia cheques de mais de um ano idade e Garrincha contou que foram encontrados entre os brinquedos de suas filhas. Era um louco, deliciosamente irresponsável. Quando perdeu a forma passou a ser apenas irresponsável. As histórias sobre o que Garrincha deixou que lhe roubassem formam o saco sem fundo de sua infeliz vida financeira. Não parecia preocupar-se com isso, na época. Tinha amigos, contava com eles. Em 1959, por exemplo, o Botafogo não queria pagar-lhe 80.000 cruzeiros velhos por mês porque um dos diretores do time, engenheiro, dizia que nem ele ganhava tanto, embora também não fosse um Garrincha na sua profissão. O Botafogo pagou 78.000 cruzeiros. Os dois restantes saíram dos bolsos do técnico Saldanha e de Renato Estelita, responsável pela política de profissionalismo que manteve no clube jogadores como Garrincha, Nílton Santos, Didi e Amarildo.

    Nas vésperas da Copa de 1962, dirigentes do Botafogo apressaram a renovação de seu contrato, antes que ele se valorizasse. Deram a Garrincha 120.000 cruzeiros velhos de ordenados, 3 milhões em luvas e um terreno sem valor em Saquarema. Radiante, ele chegou a agradecer ao clube pelo grande negócio.

    “Gente boa” – Em 1972, porém, já não há grandes negócios para Garrincha. Ele parece não entender: “Hoje em dia é assim, o sujeito só pensa em ganhar dinheiro. Até esses meninos que estão começando já têm um pai para orientar, imagine”. Seu nome não perdeu a magia. Mas ele recusa qualquer outro tipo de negócio – restaurante, posto de gasolina, qualquer coisa – porque “não tenho pensamento nem queda para isso”. Parece encurralado entre o campo do Olaria, onde treina de manhã, e o grande apartamento alugado mobiliado (espelhos, candelabros, móveis velhos) em Copacabana, diante da praia, por 5.000 cruzeiros mensais. De lá só sai praticamente para ir ao clube (não gosta de praia) e de tarde e de noite vê tudo na televisão, “menos anúncio”.

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    O apartamento, que ele detesta, é a herança de seu último desastre financeiro: a perda de 200.000 cruzeiros, metade do preço de uma casa que estava comprando com Elza e que foram perdidos pela falta de pagamento do restante, na época em que viajaram para a Itália.

    De resto, nem gosta mais de beber, como antigamente: “Para que? Já bebi tudo que podia, só não bebi veneno”. Reclama que quase não é visitado. Quando aparece alguém, o sorriso e a alegria de Garrincha abrem-se em abraços e tapinhas nas costas: “Oi, gente boa, gente boa…”

    “Gente boa”, do melhor ao péssimo, foi tudo o que Garrincha viu na vida, dentro e fora do campo. “Gente boa” já eram os times que no começo da década de 50 nem queriam vê-lo treinar. “Gente boa” também deviam ser as moças do basquete do Vasco da Gama que riam muito da sua pobreza, com aquelas camisas de algodão barato. “Gente boa”, enfim, foram todos que o ajudaram, bajularam e exploraram, e todos os que hoje em dia sumiram da sua casa. “Os meus amigos de futebol têm a sua vida, são livres, sabe como é, né”, diz o craque, sem pronunciar jamais uma frase de condenação a quem quer que seja. Ao Botafogo, por exemplo, de onde saiu depois de treze anos, ele gostaria de voltar, “porque o pessoal daquele tempo já morreu todo”. Quando vivo, em 1966, o “pessoal todo” vendeu Garrincha ao Corinthians sem sequer se dar ao trabalho de avisá-lo.

    Foi o começo de uma peregrinação que ainda não terminou. Saiu do Corinthians no mesmo ano, esteve na humilde Portuguesa do Rio, excursionou na Bolívia. Jogou no Bangu, andou pelos campos do interior e em Goiás seu nome era o chamariz, junto com o do craque local Goiano. Treinou no Fluminense e no Vasco. Em 1968, na Colômbia, fez um jogo ruim pelo Deportivo Barraquilla (deveria ganhar 600 dólares por partida), levou uma vaia e voltou sem jogar uma segunda vez. Não teve sorte nos treinos do Nacional, em Montevidéu, nem nos do Boca Juniors, de Buenos Aires. Tentou, sem sucesso, jogar no Flamengo.

    Em abril de 1969, finalmente, a andança sem frutos sofreu uma interrupção brutal quando seu carro bateu num caminhão na rodovia Presidente Dutra e sua sogra, Rosália Maria Gomes, morreu. Foi condenado a dois anos de prisão, com direito a “sursis”, por homicídio culposo, e absolvido em 1971. Elza conta que a morte de sua mãe foi a pior fase na vida de Garrincha. O Brasil, na época, parecia definitivamente fechado para ele.

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    Estrangeiro – Mané Garrincha, o “passarinho” desligado, o homem bom e sem ressentimentos, devia mesmo estar sendo vítima do destino. Ele se lembrou de que fora do Brasil deveria haver muito mais “gente boa”. Em 1963, por exemplo, os dois times mais famosos da Itália, ambos de Milão, a Internazionale e o Milan, disputavam o ponta-direita brasileiro já considerado legendário. Chegaram a oferecer meio bilhão de liras (montante inédito até então na Itália) pelo seu passe, mas o Botafogo queria muito mais e os entendimentos foram suspensos. Em princípios de 1970, lembrado disso e da carreira feliz de brasileiros como Angelo Sormani, campeão italiano, Amarildo e Mazola, entre outros, Garrincha foi viver na Itália. Era um ídolo, mas infelizmente chegara tarde demais: os times estavam proibidos de comprar jogadores estrangeiros desde 1965, a menos que fossem descendentes de italianos.

    Manuel Francisco dos Santos conformou-se em ser companheiro de Elza Soares, que ganhava bem como cantora, e a fazer propaganda de café para o IBC, por 1.000 dólares mensais. Alguns o reconheciam como vendedor de café e se entristeciam, outros pensavam que ele era um vendedor qualquer e tratavam-no com grosseria. O Brindis, um time de terceira classe, tentou contratá-lo como consultor técnico, mas de novo a sua origem impediu a transação. Para piorar tudo recebia telefonemas anônimos e ameaçadores, em italiano, acusando-o de ter “traído o Brasil” e que ele, Elza e seus filhos seriam castigados. A polícia nada conseguiu apurar. Mudaram-se para Tor Vajanica, um balneário, e a vida continuou correndo devagar, com as raras alegrias de algum jogo beneficente entre velhos jogadores famosos, como o que fez em Milão no ano passado, ou então entre times improvisados com jogadores que vinham de todos os cantos do mundo.

    Sem paralelos – Foi portanto com alguma tristeza, mas sem nenhuma surpresa, que correu pela Itália e depois pelo Brasil a notícia de que o maior ponta-direita do mundo estava jogando, de camiseta vermelha e calção branco, com um time de amadores formado de açougueiros de Tor Vajanica, num campeonato reunindo trabalhadores de bar, mecânicos e operários do lugar. “Eu faço isso”, dizia Garrincha na época, “para me divertir e me manter em forma.” Mas no principal jogo do campeonato o time dos açougueiros perdeu para o dos mecânicos por 5 a 4 (quatro passes de Garrincha) e sua carreira como amador terminou nessa derrota. Ele se defendeu de novo: “Aqui não posso nem correr, que quebro o pé. O campo é cheio de pedras e buracos”.

    Parecia realmente o fim da linha. Mas ainda não. Saldanha, referindo-se à inconsciência de Garrincha em relação às pessoas e aos negócios, diz que ela também impede que ele sinta que o verdadeiro craque tem vergonha de fazer certas coisas, como jogar entre açougueiros. Prefere sair e se esconder num sofrimento íntimo do que exibi-lo num campo. Foge da realidade.

    Garrincha, que mal vê a realidade, não finge nem tenta esconder coisa alguma. Pensa, em 1972, que é o mesmo de 1962, e por motivos bem simples: hoje, como ontem, sente um prazer de menino brincando com a bola, de mexer com os companheiros de time, de achar graça nos próprios dribles. Paradoxalmente, essa falta de percepção lhe dá força. Sua situação, agora, é mais triste para os outros do que para ele mesmo: no campo, Garrincha não tenta o impossível, corre o que pode correr, dribla o que sabe e tudo acaba dando certo. A ilusão é soberana. Ninguém o ataca seriamente. Ninguém quer machucá-lo e nenhum jogador teria nervos para agüentar a culpa de ter sido o responsável por uma contusão de Mané. Uma jogada de corpo é o quanto basta para que o estádio o aplauda e comece a rir. Em todos esses anos, e em todas as suas derrotas, não apareceu realmente um candidato sério ao seu lugar. Zequinha, Rogério e Cafuringa, por exemplo, fazem hoje um pouco de cada coisa que Mané fazia, mas não sintetizam, como ele, a capacidade múltipla de pique, drible, cruzamento e chute. Jairzinho – que Garrincha considera o maior ponta-direita do Brasil – lembrou na última Copa um pouco desse estilo único, desconcertante e inexplicável. Mas não existe outro Garrincha. Como jamais existiu alguém, que, como ele, no final de um campeonato do mundo (o de 1958), surpreendeu-se com a vitória do Brasil: “Mas não vai haver returno”?

    O anti-Pelé – Todos, enfim, querem ajudar Garrincha. Saldanha, “que se esqueceu dele” em 1969, elogiou no seu programa de rádio a volta do craque, principalmente porque “50.000 pessoas significam um carinho que ele merece”. Sandro Moreira, seu amigo, não foi ao jogo e o “tal de Nílton Santos”, o bicampeão de 46 anos e bem sucedido homem de negócios, também não foi, pelo mesmo motivo. Diz Santos: “Quero guardar a imagem do homem que jogou ao meu lado durante dez anos e que foi o maior jogador de futebol do mundo”.

    É irônico que o maior jogador de futebol do Brasil, junto com Pelé e às vezes maior que ele, fosse justamente o anti-Pelé, em tudo. Em casa ou no campo, por exemplo, Garrincha escuta histórias e gritos que o bom senso de Pelé jamais levariam em conta. Há a aritmética doméstica de sua mulher e musa Elza Soares: “Com 80 minutos de partida, Mané ainda pode decidir um jogo. Quarenta por cento de Mané é melhor que cem por cento de muita gente”. Há o incentivo de Roberto Pinto, treinador do Olaria, que durante os momentos menos brilhantes de Mané durante o jogo com o Rio Branco, em Vitória, na semana passada (o Olaria perdeu de 2 a 1), gritava: “Não tem importância. Tá ótimo. O jogo é amistoso. Sábado, contra o América, é que é para valer”. Há o coro de seus poucos amigos, repleto de adjetivos e acusações a tudo e todos, no passado, e há quem hoje afirme que Garrincha não tem mais saúde para jogar futebol. Há os torcedores, que o amam e lhe pedem autógrafos na rua, como aconteceu em Vitória na semana passada, pessoas que querem que ele dê “uma ajudazinha” na primeira comunhão da escola, às 6 horas da manhã, ou o velho torcedor que exige de Garrincha que volte a ser o maior porque sempre acreditou que “esse tal de Pelé não vale nada”. E há, sempre, a sua crença cega na “boa gente”. Foi para Vitória na véspera e não sabia bem por quê. “Sei não. Acho que se eu não for antes as pessoas de lá não acreditam. Devo ser um chamarisco”. O estádio Engenheiro Araripe, na noite seguinte, estava lotado (renda de 40.000 cruzeiros, muito acima da média local) para ver o “chamarisco”. Com algum orgulho, fontes do Olaria anunciam que ainda este mês Mané fará outra proeza: dará o pontapé inicial num jogo em Juazeiro, Bahia.

    Portas abertas – Levando gente ao Maracanã, parando o trânsito nas ruas de Vitória, ganhando mais palmas em Juazeiro e outras cidades em que o Olaria fizer excursões, Garrincha, a não ser pelo seu futebol e pela idade, continua o mesmo. A Carlinhos, dezenove anos, ponta-direita do Rio Branco, ele dizia na semana passada, com ar de pai preocupado: “Você tem que se cuidar. Treinar, jogar bola, saber com quem anda. Ganhe dinheiro. Se você perde um jogo, ninguém mais vai querer saber de você. Você deve ser pobre, né? Jogador de futebol é sempre pobre”.

    Garrincha é sempre assim. Será recebido, em todos os lugares, principalmente em Pau Grande, onde dona Noir continua esperando a sua volta, porque “as portas estão abertas”. Psicologicamente, dizem que Garrincha jamais cresceu além da fronteira de Pau Grande. Talvez jamais volte para ficar, mas ainda este mês estará lá para assinar os papéis de autorização do casamento de Edenir, sua filha de dezessete anos. Noir tem pressa nesse casamento. Ainda este ano, Mané Garrincha, a alegria do povo, vai ser avô.

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