Publicado na edição impressa de VEJA
Quem poderia dizer apenas um ano atrás, nos meios de comunicação e na vida pública em geral, que a grande novidade na paisagem política do Brasil de hoje seria o empresário paulistano João Doria? Ninguém, da mesma forma que ninguém é capaz de dizer, hoje, o que estará acontecendo com ele daqui a um ano. Uma das possibilidades é que não aconteça nada — não seria a primeira vez, como já ocorreu com outros prefeitos súbitos de São Paulo, figuras que ninguém conhecia até vê-las de repente no comando da maior cidade do Brasil. Foi o caso de Celso Pitta, que o deputado Paulo Maluf tirou do mais merecido anonimato e colocou na prefeitura, e desse desafortunado Fernando Haddad, invenção do ex-presidente Lula que o próprio Doria acaba de detonar nas últimas eleições municipais. Mas no Brasil de outubro de 2016, goste-se ou não, ele é o homem a observar — e é um espanto a quantidade de gente que não gosta. João Doria? Como assim? Não estava previsto nenhum João Doria. É uma coisa irritante, para o mundo onde circulam as ideias aceitáveis, que alguém como ele, um ser político totalmente incorreto, herói dos coxinhas do Brasil, tenha reduzido a paçoca o candidato do “maior gênio político que este país já conheceu”, deixando-o com infames 17% dos votos. A um mês da votação, os entendidos viam em Doria, em quarto lugar nas pesquisas, o exemplo perfeito do candidato errado. No dia da decisão, revelou-se o mais certo de todos.
É esse o problema de João Doria: ele é João Doria, e para ter o sucesso que teve deveria ser outra pessoa. É verdade, como anotado acima, que o novo fenômeno da política nacional pode estar a caminho de tornar-se apenas um ex-prefeito de São Paulo, mas enquanto isso não fica definido ele incomoda. Tudo bem que Lula e o PT, com a calamidade que produziram no país, perdessem a eleição, não apenas em São Paulo como em todo o Brasil. Mas não “para esse aí” — aí já é demais. Das malhas de cashmere ao corte de cabelo, do endereço residencial ao saldo bancário, Doria é a soma de tudo o que menos se recomenda nos manuais de propaganda a um candidato a prefeito numa cidade com 9 milhões de eleitores — a grande maioria dos quais, por qualquer método estatístico que se escolha, é formada por gente pobre e empenhada na luta diária pela sobrevivência.
O novo prefeito de São Paulo, na direção exatamente oposta ao que a esquerda, em geral, e os analistas políticos, em particular, prescrevem a um candidato popular, não tem a menor hostilidade contra o automóvel. Quando ouve dizer que esta ou aquela medida “higieniza” a cidade, fica a favor — acha que higiene é coisa boa. É contra fazer doações à população — esmolas, casas, mesadas. É a favor da polícia e contra os criminosos, sempre. Não gosta de impostos nem de multas. Acha que propriedades invadidas têm de ser desocupadas e devolvidas.
E se isso tudo, ao contrário do que pregam nossas classes intelectuais, fizer sentido para as massas populares que imaginam conhecer tão bem? Não parece nenhum absurdo deixar em paz o automóvel numa cidade com 8 milhões de automóveis — pode até ser errado, mas absurdo não é. Abster-se de propor doações tidas como “sociais” parece adequado à grande cidade brasileira menos dependente do Bolsa Família e do governo. Faz nexo, numa metrópole onde milhões aspiram à propriedade privada e não abrem mão de sua defesa, combater invasões — ou ser contrário à pichação de imóveis. Estará do lado da imensa maioria, também, quem ficar contra a entrega do espaço público a viciados em drogas, moradores de rua e desocupados. Que mal haveria em defender a repressão da desordem perante uma população que jamais ganhou um centavo com a destruição de vidraças de bancos? Ou em ser contra o crime diante de um eleitorado que defende o direito a portar armas? E que mal haveria em estar bem de vida quando isso é algo admirável para o paulistano pobre que trabalha e quer ter amanhã mais do que tem hoje? Nenhum, claro — sobretudo quando se pode dizer que esse dinheiro vem do próprio esforço, e não de roubalheira na Petrobras. Em suma: e se João Doria, justamente por ser quem é, for o retrato do político mais bem sintonizado, hoje, com as grandes classes populares de São Paulo?
Os pobres, aparentemente, não querem o que a esquerda quer que eles queiram. Querem coisas diferentes, muitas vezes o oposto — e aí quem faz política precisa resolver de que lado está. Doria, no começo, foi visto como uma “loucura”. Loucos, como se vê agora, parecem os outros.