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Kay e Niomar

No fatídico ano de 1964, O Correio da Manhã foi o único, entre os grandes matutinos brasileiros, a chamar o golpe militar de golpe militar

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 30 jul 2020, 20h34 - Publicado em 15 fev 2018, 13h39

Roberto Pompeu de Toledo, publicado na edição impressa de VEJA

Ao filme The Post, de Steven Spielberg, o Brasil poderia responder com um intitulado O Correio. Como o original americano trataria da saga de um importante jornal e teria igualmente como figura central uma mulher corajosa. O desfecho, porém, seria diferente.

O Post do título, como sabe quem já viu o filme, refere-se ao jornal The Washington Post, e a trama gira em torno da luta do jornal para publicar, em 1971, contra a força bruta do governo Nixon, e correndo grandes riscos, os chamados “Pentagon Papers” ─ documentos secretos mostrando os erros na condução da guerra do Vietnã e as mentiras espalhadas pelo governo ao longo do processo. Primeira coincidência: a palavra “post” equivale ao português “correio”, e Correio da Manhã era o título de um importante jornal do Rio de Janeiro, em certos períodos o principal jornal do Brasil, notabilizado, no fatídico ano de 1964, por ter sido o único, entre os grandes matutinos brasileiros, a chamar o golpe militar de golpe militar, e a posicionar-se na oposição.

Segunda coincidência: a dona do Correio da Manhã era na época uma destemida mulher, Niomar Muniz Sodré Bittencourt, assim como a dona do Washington Post era a destemida Katharine Graham (Meryl Streep, no filme). Ambas as mulheres ─ é a terceira coincidência ─ assumiram as respectivas empresas após a morte dos maridos, e isso ─ quarta coincidência ─ no mesmo ano de 1963. O marido de Niomar era Paulo Bittencourt, filho de Edmundo Bittencourt, o fundador do Correio, em 1901. O marido de Katharine (Kay, na intimidade) era Phillipe Graham, escolhido pelo pai dela, o milionário Eugene Meyer, para suceder-lhe à testa do jornal que comprou em 1933.

As mágicas de Spielberg fizeram da queda de braço entre o jornal e o governo um enredo que se acompanha em estado de tensão e de torcida mesmo conhecendo-se qual será o desfecho. Katharine, nascida em 1917, e Niomar, em 1916, foram ambas, episodicamente, também jornalistas, mas antes de assumirem o lugar dos maridos mais se destacaram como socialites. O filme dá uma amostra das festas patrocinadas por Katharine em sua suntuosa mansão. Niomar foi uma das fundadoras e, em seguida, presidente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, posição que, depois dos curadores, só socialites desempenham melhor. A Katharine coube, no momento culminante do episódio relatado no filme, decidir a disputa entre os editores do jornal, favoráveis à publicação, e os advogados, contrários. Decidiu em favor da liberdade de imprensa, afrontando o risco de retaliação à sua empresa e, no limite, de prisão.

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Niomar foi em poucas semanas de dois famosos editoriais do Correio da Manhã exigindo a queda de João Goulart, intitulados “Basta!”e “Fora”, à oposição ao governo que o substituiu. Célebre foi a artilharia contra o regime militar disparada pelo time de colunistas do jornal, Carlos Heitor Cony na frente, e logo também Otto Maria Carpeaux, Hermano Alves e Márcio Moreira Alves. Nas páginas de notícias, sempre que as brechas da censura permitiam, o jornal denunciava prisões e tortura. Katharine conheceu a glória quando a Suprema Corte decidiu em favor de seu jornal. O Correio, no mesmo dia da decretação do Ato Institucional nº 5, em 1968, foi invadido por policiais do Dops. Menos de um mês depois Niomar foi presa e “levada para um cárcere em Bangu, reservado a ladras e prostitutas”, segundo relata Ruy Castro, que à época trabalhava no jornal. “Nas semanas seguintes”, prossegue, “fez greve de fome, sofreu uma tentativa de envenenamento por gás e teve seus direitos políticos cassados”.

Katharine seguiu na trilha de influência, respeito e poder até a morte, em 2001, aos 84 anos. Niomar optou pelo exílio voluntário em Paris e só voltou a estabelecer residência no Rio depois de 20 anos, em 1993. Morreu em 2003, aos 87 anos. A promessa de transmitir uma mensagem contida nas palavras “post” e “correio” traduziu-se em realidades opostas, num caso e no outro. Com o episódio dos Pentagon Papers o Washington Post pulou à primeira fila entre os jornais americanos, em prestígio e influência, posição que se consolidaria, três anos depois, com a descoberta dos abusos do governo Nixon e a pioneira cobertura do caso Watergate. O Correio da Manhã, estrangulado pelo governo, abandonado pelos anunciantes, foi arrendado por Niomar a um grupo de empreiteiros e na mão deles morreu, em 1974. Sua última edição, com tiragem de três mil exemplares, tinha 8 páginas. Foi a última descoincidência entre as sortes de uma e outra publicação.

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