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Manifestações sem risco

O povo na rua, no dia 26, pelo menos servirá de exemplo de força de quem realmente manda na democracia

Por José Nêumanne
Atualizado em 30 jul 2020, 19h43 - Publicado em 21 Maio 2019, 16h10

José Nêumanne (publicado no Blog do Nêumanne)

Como não podia deixar de ser, as manifestações de rua convocadas para domingo 26 de maio para dar força ao presidente Jair Bolsonaro, tendo em vista o clima beligerante provocado pelo radicalismo dos embates políticos e ideológicos no Brasil contemporâneo, provocam desde já polêmicas. As discussões se realizam mais no campo de mitos e fantasias do que na realidade propriamente dita. Convém esclarecer todas desde já à luz do regime democrático, que as justifica, da ciência e da prática políticas e dos exemplos que ilustram a História do Brasil.

Primeiramente, não há por que temer nenhum efeito maligno ou ilícito, ou prever a possibilidade de alguma consequência funesta, seja do ponto de vista institucional, seja do econômico ou mesmo do equilíbrio das forças políticas em luta. Normalmente, quando se fala em movimentos populares tem-se a impressão de que eles são, pela própria natureza, de protesto, ou seja, contra a autoridade instituída ou com motivo ou assunto específico que desperte a paixão popular. Tolice! Não há protestos a favor, mas não se convocam militantes ou cidadãos apartidários para a rua apenas para protestar. A História é rica em exemplos de massa na rua para apoiar políticos ou políticas, governos ou diretrizes, projetos ou posições. É perfeitamente natural que os chamados “bolsonaristas”, seja qual ocupação tenham, sejam correligionários, assessores ou cidadãos comuns, se reúnam para demonstrar seu apoio, sua admiração, sua adesão ou até seu afeto. Nem só de protestos vivem as ruas, mas também do clamor a favor. Por que isso não aconteceria?

Convém, então, esclarecer que eventuais passeatas favoráveis ao governo, qualquer governo, expressam sentimentos e posturas que grupos de cidadãos têm todo o direito de assumir publicamente. Dizia Winston Churchill, talvez o maior estadista mundial no século 20, que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. A frase contém a experiência de um herói que foi também um grande intelectual, um orador magnífico e um escritor muito talentoso. A sentença descreve exatamente que a grande força dos regimes democráticos reside mais na fraqueza que no vigor. Ela lembra, por exemplo, que o regime convive e se fortalece também pelas palavras e atitudes, por mais desabridas e pesadas que sejam, de seus maiores inimigos. Pode-se lamentar esse paradoxo quando se sabe que Hitler e Mussolini brotaram e se fortaleceram em regimes democráticos e com entusiástico apoio da cidadania atuante. No entanto, mesmo podendo debilitá-lo, também essa fragilidade funciona como uma espécie de vacina para fortalecê-lo.

A legitimidade que garantiu o fechamento das ruas em cerca de 250 cidades de 26 Estados e no Distrito Federal para que discentes e docentes das instituições federais de ensino protestassem contra o contingenciamento de verbas para universidades federais, em 14 de maio, assiste aos fãs do governo para se manifestarem 12 dias depois.

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A prática histórica recente no Brasil é eloquente. É pouco provável que tenha havido neste país aglomerações populares maiores do que as que foram feitas contra o status quo institucional em 2013. Em 2014, a Dilma Rousseff foi reeleita e as forças políticas que a apoiavam ou a ela se opunham mantiveram as mesmas representações nas Casas do Congresso. As ruas clamaram, mas seu clamor não abalou as instituições, para o bem ou para o mal. Pode-se argumentar que o impeachment daquela senhora mobilizou as ruas três anos depois e elas foram ouvidas pelo Congresso Nacional, que a depôs, como a maioria da cidadania exigia fora de casa e dos escritórios. Mas fica a dúvida sobre até que ponto o povo provocou a deposição da chefa do governo ou comemorou o resultado da inépcia dela tanto ao provocar a ruptura quanto ao não perceber a “astúcia” de seus adversários, como gostava de dizer o personagem humorístico da TV mexicana Chapolim Colorado.

Esse enigma nunca será decifrado, mas a verdade é que há pouco de proveitoso a tirar de uma eventual resposta satisfatória para nosso caso específico do movimento previsto para 26 deste mês. O objetivo das passeatas é fortificar o presidente eleito com 57.796.986 votos contra a investida do chamado Centrão, que passou a controlar a Câmara e, com isso, a atrapalhar seus projetos de reformas, incluída a administrativa. Os atos pró-Bolsonaro serão, no fundo, contra o trio Rodrigo Maia, Paulo Pereira da Silva (o Paulinho da Força) e Valdemar Costa Neto, condestável sem mandato do semiparlamentarismo praticado. Se um volume espetacular de gente for à rua nos atos, contudo, o mandato do chamado Botafogo do propinoduto da Odebrecht e a influência dos outros dois não serão abalados em um milímetro sequer. Da mesma forma, a constatação de um fiasco em termos de multidão se manifestando não ampliará em um ponto porcentual sequer a possibilidade concreta de Bolsonaro, nas atuais circunstâncias, vir a ser submetido ao mesmo destino da ex-“presidenta”.

Isso, contudo, não significa que êxito estrondoso e fiasco tremendo sejam hipóteses vazias. É claro que sucesso nessas manifestações propiciará, no mínimo, imagens positivas a serem usadas pelo presidente da República para provar que seu triunfo eleitoral ainda não se esgotou. Em contrapartida, um malogro tirará dele a melhor arma política que pode usar no longo e doloroso inverno a que será submetido nos próximos anos em seu convívio de conflito e desconfiança com o Centrão.

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Talvez tenha sido pensando nisso que a deputada estadual Janaina Paschoal, do alto dos 2 milhões de sufrágios que a fizeram a deputada mais votada da História do Brasil, divulgou sua oposição ao risco de uma aventura malograda. Ela escreveu no Twitter: “Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem! Eu só peço o básico! Reflitam!…”.

O recado é corajoso e prudente, demonstrando duas virtudes raras em políticos brasileiros hoje. Na certa, ela já terá percebido que existe uma bolha de autossatisfação muito grande entre os adeptos de Bolsonaro nas chamadas redes sociais e teme pelas consequências desastradas de eventual fracasso. Talvez tal bolha superestime a parcela desse eleitorado que acredita em patacoadas petistas do gênero “o povo unido jamais será vencido”. Ou ela teme que o movimento seja desvirtuado para uma fé absurda em fantasias intervencionistas de cidadãos enfurecidos ocupando as dependências do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), outra instituição vista como um “atrapalho no trabalho” do capitão.

Na verdade, ninguém tem condições de depor Bolsonaro só em consequência de uma frustração das manifestações de domingo 26. O presidente foi eleito legitimamente, diplomado e empossado e só será defenestrado da chefia do Executivo se cometer uma série especial de delitos que não são permitidos ao maior mandatário do País. Mas nem o eventual sucesso extraordinário da convocação do povo terá o condão de corrigir o erro espetacular do presidente ao deixar Rodrigo Maia, do DEM de Onyx Lorenzoni, ser alçado à chefia da Mesa da Câmara. E também pelo patrocínio expresso à candidatura de Davi Alcolumbre, outro do DEM e sob patrocínio do chefe de sua Casa Civil, à presidência do Senado. O Brasil terá de conviver sob a égide de Jair Bolsonaro por mais quatro anos e só lhe caberá tornar esse fardo menos pesado do que promete ser. De seu lado, presidente e seus apoiadores terão de suportar a partilha do poder republicano com os parlamentares de exíguas votações no comando das duas Casas do Poder Legislativo. Resta-lhe a opção de compreender que não poderia ter entregue a articulação do Congresso ao veterinário gaúcho, antes que suas consequências funestas se repitam ad nauseam.

O povo na rua não o libertará dos erros primários cometidos em cinco meses e meio de governo de ventos desgovernados agitando de forma desastrada as birutas em seu campo de pouso. Mas pelo menos servirá de exemplo de força de quem realmente manda na democracia. Seja qual for o resultado, as manifestações poderão, quem sabe, dar ao presidente, que usa a expressão, mas parece desconhecer seu significado, a noção de que nas democracias o patrão é o cidadão. E ninguém recebe a delegação para decidir por quaisquer idiossincrasias que cidadãos devem ser privados do exercício desse poder e a quais se reserva o privilégio de seu exercício.

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