Publicado em 3 de outubro
Apalermados com a performance de João Doria em São Paulo, videntes de redação com doutorado em profecia eleitoral se recusam a enxergar o que aconteceu na maior e mais importante cidade do país. Como pôde um estreante nas urnas ignorar o tabu nunca violado desde a instituição da disputa em dois turnos e conquistar a prefeitura paulistana já na primeira rodada? Como decifrar a misteriosa e fulminante empatia que uniu o eleitorado da megalópole a um candidato que mal conhecia, e que as sumidades do marketing político achavam que só se metera numa aventura sem chances de sucesso por ser coxinha demais, rico demais, presunçoso demais?
Como decifrar o salto cósmico que levou um neófito nas urnas, no curtíssimo período de um mês, a sair dos 5% das pesquisas de intenção de voto e alcançar os 53,29% do total de votos contabilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral? Como explicar, enfim, que já na tentativa inaugural João Doria conseguiu que brasileiros de todas as faixas etárias, classes sociais, taxas de escolaridade e níveis de renda lhe conferissem exatos 3.075.167 votos de verdade?
Em vez de se curvar aos fatos, e aplaudir o protagonista da façanha, a tribo das pitonisas de araque tenta rebaixá-lo a coadjuvante esforçado, e creditar o triunfo do afilhado na conta do padrinho governador. “Alckmin é o grande vitorioso das eleições municipais”, repetem-se manchetes de jornais e concordam comentários radiofônicos, com o aval dos programas de TV. Um colunista da Folha escreveu que a megalópole será governada, a partir de janeiro, por algo que rebaixou a “poste do Alckmin”. Haja vigarice.
A comparação é pulverizada pelo singelo pedido de esclarecimento. Segundo a teoria do poste, Geraldo Alckmin tem prestígio político e força eleitoral suficientes para fazer de qualquer interessado o prefeito de São Paulo. Certo? Quem consegue levar à vitória até um poste nem precisaria sair de casa para eleger alguém com o belo currículo do governador que tem vaga assegurada no G3 dos presidenciáveis tucanos. Certo? Se é assim, como explicar as derrotas amargadas por Geraldo Alckmin em 2000 e 2008, quando perdeu no primeiro turno a chance de chegar ao cargo que Doria vai ocupar?
É verdade que, sem a mão firme estendida pelo governador, o prefeito eleito não conseguiria sequer inscrever-se nas prévias que indicaram o candidato do PSDB. Sem esse apoio militante, tampouco seria tecida a formidável rede multipartidária que assegurou ao candidato um latifúndio no horário eleitoral. Essas astúcias contribuíram notavelmente para a decolagem bem sucedida. Teriam dado em nada se fosse outro o escolhido. Quando Doria foi pedir-lhe a bênção para entrar no páreo, Alckmin suspeitou que aquela poderia ser uma boa aposta. Foi excelente, berra o êxito da ofensiva que reduziu a distância entre o governador e o Planalto e escavou um abismo entre Fernando Haddad e a prefeitura paulistana.
A ofensiva vencedora foi balizada por lições preciosas, e a mais relevante talvez tenha sido o resgate de uma verdade revogada pela geração dos marqueteiros arrivistas: quem comanda a campanha é o candidato. Quem terceiriza o desmatamento e a pavimentação da estrada que vai percorrer não merece sequer dirigir uma excursão turística. Quem se sujeita ao papel de canastrão de palanque eletrônico, e faz o que mandam vendedores de nuvens, deveria proibir-se de pilotar até carrinho de campanha. Doria deixou claro desde sempre que com ele não seria assim.
Com a segurança de um veterano, foi ele quem traçou a rota a seguir. Foi ele quem, dependendo das circunstâncias, resolveu se convinha contornar, driblar, ignorar ou implodir as muitas pedras no caminho. Por não saberem com quem estavam lidando, os oponentes demoraram demais a descobrir que enfrentavam um adversário pronto para escancarar os vícios da velha política, todos incompatíveis com o Brasil redesenhado pela Lava Jato. Milhões de destinatários gostaram do que dizia aquele empresário bem sucedido que se apresentava como candidato a gestor. No fim da primeira semana de campanha, os palavrórios dos concorrentes pareciam bem mais antigos que espartilhos e polainas.
Como informa a certidão de nascimento, João Doria Jr tem a política no sangue. Essa marca de nascença se manifesta no líder de um portentoso grupo de líderes empresariais, ou no jornalista exemplarmente articulado que ensina como deve ser o convívio dos contrários. E se manifestou com aguda nitidez no comandante de uma campanha que não registrou um único erro grosseiro. Doria conhece a diferença que existe entre ouvir muito ─ uma virtude rara ─ e ouvir muitos, uma perda de tempo que dilui uns poucos conselhos sensatos e sugestões bem-vindas numa enxurrada de cretinices abastecida por idiotas desocupados. Ao longo da campanha, antes de tomar decisões importantes, o candidato só trocou ideias com quem tinha ideias para trocar.
Foi ele quem selecionou o inimigo principal e os alvos da vez. Alheio a palpites em sentido contrário, fustigou sem clemência o lulopetismo em geral e os parteiros da devastação do Brasil em particular. Amparado em ideias e propostas afinadas com a alma do eleitorado antipetista amplamente hegemônico, Doria logo se tornou o representante do Brasil surgido da Lava Jato e da crise econômica, decidido a sepultar a supremacia dos poderosos ladrões, dos cínicos profissionais, dos incapazes capazes de tudo.
A reconstituição da campanha demonstra que seu epílogo não deveria surpreender ninguém. Surpreendente é a existência de tanta gente ainda surpresa com o desfecho deste 2 de outubro. O prefeito eleito é um político por destino que esperava, atento à direção dos ventos, a passagem das urnas certas. Elas apareceram neste ano.
O troféu reservado a Geraldo Alckmin é o que premia o Melhor Padrinho do Ano Eleitoral. O título de Grande Vitorioso de 2016, esse ninguém tira de João Doria.