Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Imagem Blog

Augusto Nunes

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.

No coração do poder

A saga das primeiras-damas, invariavelmente expostas a tempestades republicanas que não provocaram, é um capítulo fascinante da história brasileira

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 19h39 - Publicado em 16 jun 2019, 21h00

Publicado na edição impressa de VEJA

Nenhuma alteração no projeto da Nova Previdência foi acolhida por Jair Bolsonaro com tanto entusiasmo quanto a supressão do tópico segundo o qual deficientes físicos e intelectuais deixariam de receber o benefício da pensão integral depois da morte dos pais. Muito mais que a sensatez da mudança pesou a identidade da autora: “Pedidos da primeira-­dama são irrecusáveis e inadiáveis”, decretou o marido de Michelle. A voluntariosa mulher do presidente da República mostrou que não seria uma figura decorativa já no dia da posse, quando esbanjou fluência na Língua Brasileira de Sinais (Libras) ao discursar — antes do primeiro pronunciamento do novo chefe de governo — no parlatório do Palácio do Planalto. A reivindicação encampada por Bolsonaro incluiu-a no diminuto grupo das primeiras-damas que ultrapassaram (com sucesso) o campo de ação demarcado por uma das poucas frases declamadas em público pela paulista Eloá do Valle Quadros: “Política é coisa para os homens”, conformou-se a mulher de Jânio Quadros. A maioria das quinze antecessoras da brasiliense Michelle nunca foi além de tais fronteiras. Todas permaneceram expostas a tempestades republicanas que não provocaram. E algumas descobriram tarde demais que, no Brasil, o casamento com um futuro presidente raramente chega a um final feliz.

As trajetórias desenhadas pelas gaúchas Darcy Sarmanho Vargas e Maria Thereza Fontella Goulart informam que a distância entre o sonho e o pesadelo pode ser medida em mais de duas décadas ou menos de dez anos. A mulher de Getúlio Vargas teve tempo para consolidar o modelo oficial: primeira-dama se ocupa de programas sociais. Entre 1930 e 1945, e depois entre 1951 e 1954, Darcy foi incumbida pelo marido de dividir-se entre a administração dos assuntos domésticos e a gestão de entidades como a Legião Brasileira de Assistência ou a Casa do Pequeno Jornaleiro (casada com Michel Temer, a penúltima integrante da linhagem trabalhou bem menos que a fundadora: liberada de preocupações com pequenos jornaleiros, a bonita paulista Marcela pôde dedicar-­se exclusivamente ao pequeno Michelzinho). As atividades cotidianas fizeram de Darcy uma testemunha privilegiada e vítima sem culpa de um dos períodos mais tempestuosos da história, que incluíram a deposição do ditador que chefiou o Estado Novo e o suicídio do presidente democraticamente eleito.

A Mulher Vestida de Silêncio (Editora Record), livro do jornalista Wagner William que acaba de resgatar a saga da viúva de João Goulart, prova que o percurso entre o céu e o inferno, cronometrado pelo relógio da História, às vezes dura um punhado de segundos. Maria Thereza foi a mais jovem, linda e injustiçada das primeiras-damas do Brasil. Tinha 15 anos quando virou namorada do conterrâneo de São Borja que, a caminho dos 40, já fora ministro do Trabalho do governo Vargas e era forte candidato a herdeiro político do líder morto. Ainda era adolescente quando se casou com o vice-presidente da República e acabara de passar dos 20 quando a renúncia de Jânio Quadros a transformou em primeira-dama. O rosto anguloso e tristonho de miss no último desfile viralizou na capa de revistas, promoveu-a a rival de Jacqueline Kennedy e fez suspirar dignitários estrangeiros (o ditador iugoslavo Josip Broz Tito derramou-se em palavrórios tão calorosos que o constrangido tradutor foi obrigado a suprimi-los na versão em português). Tanta beleza, acentuada pelos vestidos do costureiro Dener Pamplona de Abreu, favoreceu o bombardeio de rumores sobre casos de adultério que só aconteceram no imaginário da CIA. Maria Thereza nem chegara aos 30 quando partiu para o exílio com o marido deposto.

Darcy Vargas 

Darcy Vargas – A pioneira nos programas sociais (Arquivo/Agência O Globo)

Continua após a publicidade

Na madrugada de 2 de abril de 1964, militares invadiram a Granja do Torto, onde vivia em Brasília, ordena­ram-­lhe que juntasse o que cabia numa mala e a embarcaram no avião da FAB que a depositou em Porto Alegre. “Não sei o que foi feito dos meus vestidos, dos objetos pessoais, das minhas coisas”, lastima Maria Thereza. Ela cruzou a fronteira sem saber do paradeiro do marido, que reencontraria dias depois no Uruguai. Só no exílio soube da boataria infame que tentou reduzi-la a uma aventureira vulgar, que iludia um homem incapaz de governar o próprio casamento. Ironicamente, Jango ignorou sistematicamente o apelo que Maria Thereza formulou ainda nos tempos de noiva e repetiu até as vésperas da viuvez, consumada em 1976: ela só queria que o marido deixasse de ser mulherengo.

Continua após a publicidade
Maria Thereza Goulart 

Maria Thereza Goulart – A mais jovem e injustiçada (Jornal do Brasil/.)

Continua após a publicidade

Esse traço comportamental foi decerto a maior semelhança entre João Goulart e Jânio Quadros. A diferença é que o sul-mato-grossense de Campo Grande amava fantasiar-se de marido exemplar. “Eloá manda em mim”, jurava em público o homem que, em particular, jamais perdeu chance alguma de justificar a fama de priápico. Nesse aspecto, como confirmam anotações nos diários de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas, Jânio manteve a tradição das aventuras extraconjugais materializadas com a prudência possível pelos dois antecessores. A gaúcha Darcy, com discrição de mineira, reagia com longos períodos de mudez à descoberta de furtivas incursões do marido por alcovas cujo endereço figurava entre os segredos de Estado. A mineira Sarah, com a impulsividade de uma gaúcha, explodia em bíblicos acessos de cólera, sobretudo depois que soube da paixão de JK pela socialite Lúcia Pedroso.

Tudo somado, a única primeira-­dama poupada de surtos de ciúme entre 1930 e 1964 foi Carmela Telles. Ao casar-se com o tenente Eurico Gaspar Dutra, devoto de Santo Antônio, aquela viúva de 30 anos era mãe de dois filhos e tinha na cabeça uma ideia fixa que, além de bem mais audaciosa que a mudança na Previdência conquistada por Michelle Bolsonaro, rimava com o apelido que a canonizou em vida: Dona Santinha não descansaria enquanto não fossem fechados todos os cassinos no Brasil. O duro golpe na jogatina, decretado em abril de 1946 pelo presidente Dutra, foi o desfecho da conspiração engrossada pelo bando de autoridades eclesiásticas que visitavam com tamanha frequência o Palácio Guanabara que a residência oficial do chefe de governo, governada por Dona Santinha, ficou com cara de palácio episcopal.

Sara Kubitschek 
Continua após a publicidade

Sarah Kubitschek – Bíblicos acessos de cólera (Arquivo/Agência O Globo)

Aberto pelo viúvo Humberto de Alencar Castello Branco, o ciclo dos generais-presidentes ressuscitou a figura da primeira-dama em 1967, com a posse conjunta de Arthur e Iolanda Costa e Silva. A paranaense falante, extrovertida e saliente tratou de substituir conversas com gente fardada pelo convívio com ricaços ansiosos por aproximar-se do marido poderoso. E explorou esse filão com a objetividade de quem parecia ter adivinhado que a festa iniciada em março de 1967 seria bruscamente encerrada pelo derrame que surpreendeu o marido em 28 de agosto de 1969. Nesses dois anos e meio, numerosos empresários e políticos aprenderam que a tramitação de qualquer pedido ao chefe do Executivo era encurtada por um colar, uma pulseira ou um par de brincos. Essa via rápida para o Planalto foi obstruída pelas também gaúchas Scylla Médici e Lucy Geisel, uma soma de duas introversões que resultou em dez anos de silêncio.

Carmela Telles Dutra 
Continua após a publicidade

Carmela Telles Dutra – A “Dona Santinha” (Jornal do Brasil)

O barulho recomeçou em 1979 com a chegada aos palácios presidenciais do casal João Baptista e Dulce Figueiredo. Também para esquecer as escapadas noturnas do marido, que driblava o esquema de segurança cavalgando motocicletas, a paulista Dulce transformava em asas as imensas sobrancelhas postiças e voava para o Rio. Ele foi o único presidente que conseguiu produzir um filho fora do casamento enquanto tentava governar o país. Ela comemorou dançando numa boate com o ator Omar Sharif as compras milionárias que fizera à tarde sem pagar um centavo. Que comerciante deixaria de presentear a primeira-dama com um traje ou uma joia que, apesar de encantada com a ideia, ela só não levara porque o preço era alto demais?

Ruth Cardoso 

Ruth Cardoso – A única da estirpe com profissão própria, antropóloga (Marcos Mendes/Agência Estado/.)

As diferenças entre as personagens que se seguiram a Dulce Figueiredo atestam que não há uma receita de primeira-dama. Marly Sarney ficou cinco anos no cargo sem que a alma e a cabeça saíssem do Maranhão. Mulher do carioca Fernando Collor, que via no Brasil uma versão agigantada de Alagoas, Rosane Malta transformou a Casa da Dinda, onde morou em Brasília, numa extensão da Canapi em que nascera, e alternou contrafações de lua de mel com brigas conjugais suficientemente ferozes para assustar o mais temível cangaceiro. A antropóloga Ruth Cardoso foi a única da estirpe com profissão definida, luz própria e mente brilhante, singularidades que explicam a rejeição do título que lhe parecia depreciativo. “Primeira-dama é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, ensinou a admirável paulista que concebeu o impressionante conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. A marcha da civilização foi interrompida pela instalação da paulista Marisa Letícia Lula da Silva numa sala no Palácio do Planalto. Nos oito anos seguintes, de costas para programas sociais, sobrou-lhe tempo para entrar sem bater no gabinete presidencial e ordenar ao marido que fosse mais cedo para casa, tornar-se campeã de milhagem no Aerolula, desfigurar o jardim do Alvorada com uma estrela vermelha feita de sálvias, propor a nomeação de Ricardo Lewandowski para o Supremo Tribunal Federal e escolher o sítio e o apartamento que o presidente em fim de mandato ganharia dos empreiteiros agradecidos.

É cedo para saber o que o destino reserva a Michelle Bolsonaro. De todo modo, não custa sugerir-lhe desde já que se mire no exemplo de Ruth Cardoso. A mulher de Fernando Henrique Cardoso nem precisou pedir ao marido que fizesse algo. Bastou que FHC a deixasse agir. Michelle não será necessariamente venturosa caso aceite o conselho. Mas ajudará a tornar o Brasil menos infeliz.

Publicidade

Imagem do bloco

4 Colunas 2 Conteúdo para assinantes

Vejinhas Conteúdo para assinantes

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.