EDITORIAL DO ESTADÃO DESTA QUARTA-FEIRA
Os mais de 700 documentos militares sigilosos sobre os suspeitos de terrorismo presos na base americana de Guantánamo, em Cuba, recém-divulgados pelo site WikiLeaks e o jornal The New York Times, formam o quarto conjunto de papéis confidenciais do governo dos EUA trazidos a público desde o ano passado. A nova batelada deixa claro que à incapacidade da maior potência global de conservar os seus segredos se soma a incompetência para distinguir quem é quem entre os presumíveis agentes do seu inimigo número um – a rede terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden.
Os seus ataques ao país em 11 de setembro de 2001 estão na origem da transformação de Guantánamo numa penitenciária sui generis, que afronta os direitos consagrados na pátria das liberdades e nem assim constitui um instrumento eficaz de combate à ameaça fundamentalista homicida. Já se sabia da rotina de violências, humilhações e desproteção legal que se abatia sobre os encarcerados no enclave americano em Cuba. Sabia-se também que não poucos deles, depois da captura, tinham sido enviados clandestinamente a outros países para ser torturados – e dali para Guantánamo.
Mas não se sabia do surrealismo que imperava nessa que se tornou uma “duradoura instituição americana”, como diz o New York Times, em alusão à desistência do presidente Barack Obama de fechar o que Washington chama delicadamente de “centro de detenção”, uma de suas mais fortes promessas de campanha. Os papéis vazados são quase todos “relatórios de avaliação”, escritos entre fevereiro de 2002 e janeiro de 2009, ainda no governo Bush, portanto. São as fichas de 759 dos 779 detentos que passaram pelo lugar ao longo do período, entre eles um jovem de 14 anos e um ancião senil de 89.
Em relação a pelo menos 150 “combatentes inimigos”, nem os seus próprios guardiães conseguiram estabelecer vínculo algum com a Al-Qaeda ou o Taleban. Foram parar em Guantánamo pelas razões mais implausíveis, como terem sido confundidos com homônimos ou acusados de atos terroristas pelos verdadeiros perpetradores, sem que a versão fosse investigada. Passaram anos, porém, até que fossem devolvidos aos seus países de origem. Um cinegrafista sudanês que trabalhava para a TV Al Jazeera passou 6 anos respondendo a perguntas sobre programas de treinamento, equipamentos e coberturas jornalísticas da emissora. Foi solto em 2008 (e voltou ao emprego).
Continuam na base 172 suspeitos. A maioria é considerada de “alto risco”. No entanto, conforme os documentos expostos, assim também eram classificados cerca de 200 dos 600 já libertados. Culpado ou inocente, nenhum poderia ser levado a um tribunal penal pela fragilidade das evidências reunidas contra eles e as circunstâncias de suas confissões. Mesmo o mais conhecido de todos, Khalid Shaikh Mohammed, operador-chefe confesso do 11 de Setembro, será julgado por uma corte militar; o governo desistiu de submetê-lo a um tribunal de Manhattan, onde se erguiam as torres gêmeas contra as quais mandou que se lançassem os aviões tomados pelos bandos suicidas naquela terrível manhã.
Muito do que consta nos “relatórios de avaliação” dos prisioneiros é o que deles disse um punhado de outros. Além disso, membros dos serviços de inteligência de uma dezena de países – todos árabes ou muçulmanos, salvo a Rússia e a China – estiveram em Guantánamo para interrogar os seus nacionais. Verificou-se depois que o que eles lhes diziam não conferia necessariamente com o que haviam dito aos americanos. O que é verossímil é o retrato degradante do cotidiano da base, a tensão irrespirável no ar, as juras de desforra e os revides. Dificilmente isso terá mudado com o advento do governo Obama.
Não está claro o que ele possa fazer, sob os ataques da virulenta oposição republicana, para se livrar do pesadelo herdado – que continua a ferir, como nenhuma outra questão singular, a imagem dos Estados Unidos. E tudo para quê? “Quanto mais se sabe de Guantánamo, pior parece como meio de enfrentar o terrorismo”, resume o diário londrino The Guardian, que também publicou os documentos. “É um símbolo de vingança, não um sistema de justiça”.