O poder briga com a sombra
Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato
Fernando Gabeira (publicado no Blog do Gabeira)
O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.
Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.
Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.
A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.
Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.
Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.
No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.
Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o vice pode ser protagonista?
Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?
Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forcas Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.
Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de 64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os militares destruíram os políticos de direita.
O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?
As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.
As Forças Armadas não divagam sobre filosofia ou política, mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.
Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato.
A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto; no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o pai.