Bruno Abbud
“O que é que tem aqui que faz com que meu filho não queira voltar para casa?”, ouviu certa vez Manuel dos Remédios, vulgo Seu Maneco. E não soube encontrar o que de mais atraente havia em seu quintal. Mas, diante do silêncio do caiçara de 57 anos, os olhos daqueles pais preocupados puderam perceber o que arrancara o adolescente da cidade grande. Águas claríssimas, natureza exuberante, ar fresco, sol potente, vento fraco e, sobretudo, paz. Há meio século, Maneco vive na praia de Martim de Sá, numa península isolada em Paraty, no Rio de Janeiro. Só tem a companhia da família, proibida de ultrapassar uma dezena de integrantes.
O impedimento foi imposto pelos fiscais da Reserva Ecológica da Joatinga, onde não é permitida a permanência de gente demais por mais de um mês. A reserva faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, que inclui 63 ilhas e o ponto onde caiu o helicóptero que transportava o deputado Ulysses Guimarães, cujo corpo desapareceu para sempre nas profundezas do Atlântico. Pelo menos 10 mil hectares da APA são intocáveis. Por isso, Gabriel teve de ceder à exigência dos pais, que vieram de Belo Horizonte para resgatar o fujão, mais de três semanas acampado no imenso terreno do senhor de camisa desabotoada, pele desgastada pelos muitos anos debaixo de sol e dentes refeitos recentemente.
O pescador Maneco nunca teve contato estreito com a civilização. Numa pequena lancha, suas viagens à cidade limitam-se a carregar o lixo produzido na península e a buscar alimentos para a família, três horas distante do continente. No século 19, Martim de Sá era uma fazenda de escravos. A trilha que Maneco abriu sozinho ─ com a ajuda de uma enxada, um par de botas e uma garrafa térmica com café coado ─ leva a cachoeiras, praias vizinhas e às ruínas da antiga sede, pedaços de concreto tomados por plantas tropicais.
Roque Caçador, pai de Maneco, chegou a Martim de Sá depois dos fazendeiros. Deixou as terras para o filho. Dona Capitu, a mãe, tem 102 anos e, vez por outra, entra na floresta, facão na mão, para trazer a lenha que alimenta os dois fogões. “Ela me pede para buscar lenha e eu esqueço”, diz Maneco. “Quando vejo, ela já está voltando com a lenha embaixo do braço”.
É no fim do ano e em feriados prolongados que a paz do pescador é interrompida. Jovens casais, grupos de adolescentes e famílias inteiras descem pelo morro, vindos de Pouso da Cajaíba, vilarejo vizinho, ou surgem pelo mar, a bordo de barcos alugados no porto de Paraty. Imediatamente o quintal de Maneco se transforma numa selva de barracas.
A família caiçara organiza a entrada, cobra R$ 20 diários por visitante e prepara o almoço vendido a R$ 10 ─ um prato com arroz, feijão, alface e peixe frito. Maneco espalha placas pelo acampamento: “Quer fazer barulho? Vá até a praia”, “Aqui não se fala palavrão” e “Não abuse de bebidas e drogas. Se embriague da natureza”.
Na praia, sempre às 15h, o pescador reúne em volta de si um grupo de curiosos que, depois de terem flagrado a notícia em cartazes grudados em árvores, sentam na areia para assistir à famosa “roda de histórias de Seu Maneco”. A narrativa revela contos da península, faz críticas a valores materiais e celebra a natureza . “Aqui em Martim de Sá eu não arranco uma árvore. Não têm nada poluído aqui. Tudo é puro”. Perguntado se possuía uma televisão em casa, Maneco, pouco familiarizado com o assunto, respondeu: “Vou ver se coloco uma aqui. Mas não vai passar coisas da cidade, não. Só coisas da natureza”. Natureza que atrai quase sempre algum foragido da capital, pronto para armar a barraca e esconder-se dos pais, do trânsito, do agito, enfim, dos costumes urbanos para infiltrar-se na bucólica rotina de Martim de Sá.
O roteiro
A estrada que leva à Paraty é a BR-101. Para chegar a Martim de Sá há três opções: alugar um barco por R$ 25 até a praia de Pouso da Cajaíba e, de lá, percorrer uma trilha de uma hora e meia; pagar R$ 50 para navegar diretamente até Martim, dependendo das condições do mar; ou sair de Paraty numa trilha pela mata que dura de três a quatro dias. Alguns trechos são íngremes e exigem resistência dos turistas.
É recomendável levar alimentos, bebidas, remédios e outros itens básicos. Ou comprar tudo nos supermercados de Paraty, antes da aventura. Óculos de mergulho são imensamente aproveitáveis. “Aqui dava para pegar peixe com a mão”, conta Maneco, lembrando os anos 60 e 70. “Agora que tem rastreador, os peixes se escondem no fundo”. Mas ainda é possível (e bastante provável) visualizar espécies marinhas como arraias, tartarugas e moreias.
Em Martim de Sá não há infraestrutura. A hospedagem é feita em barracas. Maneco mantém uma pequena vendinha, com produtos sobretaxados e, até às 22h, deixa ligado um gerador de energia elétrica. Em vez de se hospedarem, grupos de idosos e famílias com crianças podem optar por passar o dia no paraíso de Maneco. Há pacotes de ida e volta vendidos por barqueiros no porto de Paraty. A opção poupa o desgaste das trilhas e da estadia em barracas.
Emissários de construtoras constantemente tentam comprar o terreno que desemboca na praia paradisíaca. Querem construir um resort e fechar o local para os clientes. Maneco não arreda pé. Jamais aceitou as ofertas milionárias. “E se isso tudo acabar? O dinheiro vai comprar?”, diz. Ele possui todos os direitos que lhe são cabíveis por lei, como morador da área por mais de 50 anos. “A geração de hoje vai se complicar porque só pensa em dinheiro”.