Oswaldo Aranha, o insuperável número 2
Uma fotobiografia ilumina a trajetória do parceiro e rival de Vargas. Seu brilho político contrasta com a mediocridade dos dos homens públicos de hoje
Publicado na edição impressa de VEJA
Podem conviver sob a mesma pele, em desconcertante harmonia, tipos humanos aparentemente incompatíveis? Eis uma graça alcançada por uns poucos eleitos. A essa tribo sempre ameaçada de extinção pertenceu o brasileiro nascido em 1894 na cidade gaúcha de Alegrete resgatado pela recém-lançada Oswaldo Aranha – Uma Fotobiografia. Na obra de fina feitura, organizada por um neto do biografado, Pedro Corrêa do Lago, mais de 600 imagens, 80% das quais até agora inéditas, conjugam-se com textos concisos e claros para promover o desfile das distintas versões que coexistiram no território localizado entre a alma e o coração da figura extraordinariamente múltipla. O revolucionário e o conciliador, o guerreiro impetuoso e o negociador político, o caudilho sem paciência e o diplomata sem pressa, o nativista de bombachas e o cosmopolita de terno branco e sapato bicolor — Oswaldo Euclides de Souza Aranha sempre administrou com notável equilíbrio tantas ambivalências. Talvez porque esse íntimo convívio dos contrários tenha estado permanentemente subordinado ao mais poderoso traço de sua personalidade: a paixão visceral pelos valores democráticos. Assim, seja qual for a foto que se contempla, seja qual for a versão nela retratada, o que se vê é Oswaldo Aranha (quase sempre com o inevitável cigarro debruçado sobre o lábio inferior).
Nada se vislumbra de antagônico mesmo em imagens dissonantes separadas por alguns centímetros. O jovem que comanda em trajes típicos uma tropa de cavaleiros chimangos, rumo a mais um entrevero da revolução de 1923, é o embrião do elegante frequentador do Jockey do Rio que conversa numa roda de amigos entre uma aposta e outra. O intendente de Alegrete que conduz energicamente o Partido Republicano Rio-Grandense na região fronteiriça é o esboço do embaixador que, na presidência da Assembleia da ONU, conceberia a complicada tessitura da partilha da Palestina e consumaria os trabalhos de parto do Estado de Israel. O filho dos pampas à vontade no grupo de peões na hora do chimarrão exibe o mesmo desembaraço do cidadão do mundo que troca ideias em inglês, nos mais cobiçados salões do Rio, com celebridades como o banqueiro Nelson Rockefeller e o cineasta Orson Welles, com um John Kennedy mal saído da adolescência ou com estrelas de Hollywood. O conspirador de 1930 que convenceu um hesitante Getúlio Vargas a assumir a chefia suprema das forças armadas oposicionistas e chegar pelos campos de batalha ao palácio presidencial que não conseguira alcançar pelo caminho das urnas, obstruído pela fraude em escala industrial, antecipa o ministro da Fazenda que em 1954, na derradeira reunião do ministério de Getúlio, defenderia a contraofensiva destinada a abortar os ataques ferozes da aliança que juntara militares sublevados e políticos golpistas. A atitude de Aranha rima com o discurso à beira da sepultura em São Borja, quando se despediu do velho companheiro.
“Não te trouxe meu abraço, mas aquele aperto de mão amigo de todos os dias, para que continuemos, tu na eternidade e eu nessa vida, o diálogo de dois irmãos ligados pela terra, pela raça, pelo serviço e pelo amor ao Brasil”, disse no começo da bela oração fúnebre. Esse poema do adeus ao companheiro morto, grande suicida, foi o fecho perfeito para a história de uma amizade que sobreviveu a rupturas dramáticas, reaproximações desconfiadas e ciumeiras muito mal disfarçadas.
Os vínculos consolidados na década de 20 nunca se dissolveram, mas foram esgarçados em várias ocasiões por colisões frontais entre o presidente que amava o poder acima de todas as coisas e o amante da liberdade, avesso a autoritarismos e regimes absolutistas. Em 1937, por exemplo, Aranha se opôs publicamente à decretação do Estado Novo. Em 1942, valendo-se do prestígio acumulado no Brasil e das ligações com autoridades americanas estabelecidas desde os primeiros dias como embaixador em Washington, estimulando com discrição e habilidade o poder de pressão da Casa Branca, Aranha conseguiu neutralizar o fascínio de Getúlio pelo Eixo nazifascista e, em seguida, induzir o ditador a juntar-se aos Aliados na II Guerra Mundial. Foram poucas as vitórias do herdeiro político dos Aranha de Alegrete nas quedas de braço travadas com o continuador da dinastia dos Vargas de São Borja. O mais demorado de todos os embates nunca foi explicitado claramente. Ambos sabiam que tinham todos os atributos para governar o Brasil, mas só um deles acabou chegando lá.
“Nunca vi duas figuras tão díspares se darem tão bem, era uma espécie de concubinato político”, disse Alzira Vargas do Amaral Peixoto numa entrevista publicada em 1958. Dois anos depois, a filha preferida e única confidente de um homem avesso a intimidades verbais escreveria Getúlio Vargas, Meu Pai, que acaba de ser relançado. “Como brigavam, como se disputavam e como se ajudavam!” Segundo Alzirinha, nenhum deles perdia chances de criticar o outro, mas os dois também não admitiam que terceiros entrassem no assunto, mesmo que para endossar o que diziam. “Parecia uma briga de marido e mulher na qual ninguém podia se meter”, comparou. “As diferenças entre eles eram visíveis, claras. Oswaldo, alegre, falastrão, extrovertido, com ambições recalcadas, sonhos irrealizados. Getúlio, quieto, comedido, introvertido, ambições realizadas aparentemente, sonhos impossíveis. Porém, conversavam, se entendiam, se completavam.”
Nascido em 1894, doze anos depois de Getúlio, Aranha seria o número 2 da geração que ingressou na vida política na década de 20 ─ a melhor e mais brilhante safra de homens públicos da história do Brasil republicano. Ao elenco gaúcho, enriquecido por raridades como João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, Batista Luzardo, Cordeiro de Farias ou Luís Carlos Prestes, somaram-se coadjuvantes com suficientes qualificações para brilhar como protagonistas. Nessa categoria figuram os cearenses Juarez Távora e Juracy Magalhães, o mineiro Virgilio de Mello Franco, o fluminense Eduardo Gomes, o paulista Armando de Salles Oliveira, o paraibano José Américo de Almeida. Nunca mais o Brasil veria tantos políticos vocacionais esbanjando talento ao mesmo tempo.
Aranha ainda não sabia disso em 1933, quando era ministro da Fazenda do governo provisório. Se soubesse, não teria dito que “o Brasil é um deserto de homens e de ideias”. Seria a sua frase mais famosa. Seria também o mais desastrado parecer fabricado por um cérebro reverenciado pela precisão dos diagnósticos políticos. Se a geração dos anos 20 lhe pareceu miseravelmente árida, o que diria se estivesse vivo? Como descreveria a paisagem do país nesta segunda década do século XXI? Que qualificações mereceriam os governantes que transformaram o deserto de homens e de ideias numa selva infestada de larápios, vigaristas, assaltantes de cofres públicos e ramificações da grande tribo dos fora da lei? Como reagiria Aranha ao saber que o país que levou um presidente honrado ao suicídio é governado por um homem que, acuado pelas bandalheiras em que se meteu, aparece cercado de prontuários para acusar o acusador? Alguém conseguiria explicar-lhe por que líderes originários da elite que escrevia sem erros e falava português corretamente foram trocados por analfabetos funcionais como Lula ou bestas quadradas como Dilma Rousseff? Aranha estava com Tancredo Neves quando um tiro ecoou no Catete e mudou o rumo da história. O que acharia da conversa em que o neto do ministro da Justiça de Getúlio, o afastado Aécio Neves, esbanjou fluência na linguagem de cortiço? Faltam homens, faltam ideias, falta cadeia. O que há de sobra é bandido. São tantos que podem ser encontrados na cúpula dos três poderes.
A gestação do deserto começou com a mudança da capital para Brasília. Se o Congresso ainda funcionasse no Rio, por exemplo, bastaria que os renans, jucás, collors e eunícios dessem as caras na Avenida Rio Branco para sentir na pele o que o povo pensa do desempenho da turma. Entre 1964 e 1984, o sumiço de homens e ideias foi intensificado pela ditadura militar, que sufocou os nascedouros de homens públicos, como os centros acadêmicos, e fez o que pôde para extinguir espécies afetadas por defeitos intoleráveis ─ coragem, honradez, vergonha na cara, altivez, autonomia intelectual e independência política, por exemplo. Somam-se a essas mazelas históricas uma legislação eleitoral ineficiente e um sistema político em permanente crise de representatividade. Os estragos restantes podem ser explicados pela constatação de Nelson Rodrigues: “Os idiotas estão por toda parte”. Talvez já sejam hegemônicos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Os otimistas irredutíveis lembram que as coisas pareciam menos assustadoras há menos de trinta anos. E eram, graças à longevidade de gente que sobreviveu à devastação desencadeada em 1964. Em julho de 1994, quando já era candidato à Presidência, Fernando Henrique Cardoso evocava em tom nostálgico os seus tempos de senador. “Eu tive o privilégio de conviver com homens como Darcy Ribeiro, Roberto Campos, Afonso Arinos, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e outras cabeças brilhantes”, exemplificou. Todos os integrantes da lista de FHC tinham o status de cardeal. Mas também tinham mais de 70 anos. A morte dos últimos servidores da nação extinguiu o cardinalato. Hoje o Legislativo é governado pelo baixo clero.
Serão todos enterrados na cova rasa dos que por pouco não destruíram o país que a geração de Oswaldo Aranha tentou bravamente modernizar. “Vivemos, realmente, demais, porque os dias de nossas vidas serão contados por épocas, para o mundo e para o nosso país”, constatou numa carta a Flores da Cunha em fevereiro de 1959, um ano antes da morte, no Rio. “Essa metade do século XX foi uma síntese de todos os tempos. As decisões tomadas em nossa época (…) assemelharam-se à semana da criação. Ajudamos, Flores, a amainar a terra desse renovado destino brasileiro.”
O legado do atual ajuntamento de políticos é inferior a zero. A poucos meses do início da campanha presidencial de 2018, milhões de profissionais da esperança não conseguem localizar um candidato que os anime a pelo menos sair de casa para votar. Há pouco mais de cinquenta anos, faltava palanque para um Oswaldo Aranha. Meses antes do fim, ele recusou um convite para candidatar-se a vice-presidente, em 1960, na chapa encabeçada pelo marechal Henrique Lott. “Estou cansado de ser o segundo”, confessou. Pena que as trapaças da sorte impediram que se tornasse o número 1. A fotobiografia confirma que Oswaldo Aranha é o presidente que poderia ter sido e não foi. Se tivesse governado o país, ele morreria mais feliz. E o Brasil viveria mais feliz enquanto fosse presidido por um homem assim.
Oswaldo Aranha – uma fotobiografia, de Pedro Corrêa do Lago (Capivara; 412 páginas; 70 reais)
Um retrato íntimo da esfinge
O testemunho de Alzira, filha e confidente de Getúlio Vargas, ganha uma nova edição ampliada
Escrito em 1960 e só agora relançado em edição definitiva, enriquecida por complementos inéditos e por um segundo volume de memórias cuja conclusão se tornou impossível com a morte da autora, em 1992, Getúlio Vargas, Meu Pai é um amoroso retrato do mais influente político brasileiro do século visto por Alzira Vargas do Amaral Peixoto. A compreensível brandura do olhar é compensada por revelações só acessíveis à filha predileta e única confidente de um homem que sempre preferiu ouvir a falar.
Nas versões oficiais, ela foi arquivista e depois auxiliar de gabinete do presidente constitucional. A história real informa que coube a Alzirinha a guarda de um precioso baú de segredos do gaúcho que governou o Brasil por quase vinte anos. Quem leu a edição original sabe que, para a funcionária avessa a mesuras e salamaleques, Getúlio era simplesmente o “patrão”. A safra de novidades atesta que Alzirinha reduziu a farrapos a couraça que protegia a intimidade de um introvertido vocacional. A confiança crescente e recíproca conferiu à confidente o status de conselheira de alta patente. Numa das dezenas de cartas trocadas entre a filha que chamava de “Ge” o pai que a tratava por “Rapariguinha”, o ex-ditador exilado nos pampas alinhava os perigos que espreitavam todos os caminhos possíveis e, na última linha, pede a opinião da destinatária: “Que pensas?”. Dúvidas e desconfianças são dissipadas por considerações argutas, observações irônicas e sugestões astuciosas. A correspondência manuscrita comprova que foi Alzirinha quem convenceu a esfinge de que era hora de regressar pela rota do voto ao coração do poder alcançado vinte anos antes pelo atalho da insurreição armada.
O livro que expõe facetas ocultas de Getúlio já seria indispensável se apenas contasse quem foi Alzira Vargas. Ninguém viveu tanto tempo em palácios. A filha do governador do Rio Grande do Sul morou no Piratini. A filha do presidente da República trabalhou no Catete e dormiu no Guanabara. A mulher de Ernani do Amaral Peixoto dividiu o palácio em Niterói com o interventor e depois governador do Rio de Janeiro. Deve ser muito bom morar em lugares assim, deixei escapar no meio de uma conversa com ela em 1987. “Bobagem”, cortou a septuagenária que desprezava rodeios. “Seria uma vida insuportável se eu não carregasse o tempo todo a caixinha com coisas que nenhum palácio tem.” Intrigado, pedi exemplos. “Fósforos, pente, agulha, linha e botão”, informou. “Você pode mobilizar todos os ajudantes de ordens, todos os oficiais de gabinete e dois ou três ministros”, riu Alzirinha. “Eles demoram meia hora até descobrir que é melhor mandar alguém buscar na cidade.”
Getúlio Vargas, Meu Pai, de Alzira Vargas do Amaral Peixoto (Objetiva; 560 páginas; 69,90 reais ou 39,90 em versão digital)