William Waack (publicado no Estadão)
A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros — ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.
O material publicado até aqui sugere que Sergio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.
Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário — a classe política em geral e o PT em particular — comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.
Não se trata aqui do famoso postulado dos fins (liquidar corrupção) que justificam os meios (ignorar a norma legal). Se Moro e Dallagnol de alguma maneira se aconselharam com Maquiavel, então foram influenciados pelo que se considera na ciência política como a originalidade do pensador florentino do século 16 (que acabou dizendo o que todo mundo sabe, mas ninguém gosta de admitir). É a noção de que ideais nunca conseguem ser alcançados. Em outras palavras: não há um confronto entre política e moralidade. Só existe política.
Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.
Os diálogos sugerem a interpretação de que Moro e Dallagnol, apoiados pelos fatos concretos das avassaladoras corrupção e manipulação políticas, sempre estiveram convencidos de que “idealismo”, legal ou moral, eram só pretextos esgrimidos pelos adversários (inclusive STF). De qualquer maneira (e isso é Maquiavel) não haveria nesse contexto histórico como equilibrar idealismo e realismo. O que existe é a competição entre realismos — de um lado a Lava Jato e, do outro, o “sistema” político e seus tentáculos.
O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal”, como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.
O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.