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Augusto Nunes

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Valentina de Botas: O álibi ultrajante de Cidinha Campos

Será que algum dia desfrutaremos uma cidadania não seletiva e menos rala, que não preconize a porrada autorizada, o estupro merecido, a igualdade diferente perante a lei?

Por Augusto Nunes Atualizado em 4 jun 2024, 21h55 - Publicado em 29 jul 2016, 21h57

No fim de tarde rodeando a casa modesta no topo de uma ladeira de Olinda, de onde se vê o sol desaparecer na fresta entre o horizonte e o mar, o pernambucano neto de escravos, de olhos, fala e coração mansos, reuniu parte da coleção de netos para começar a leitura de A Vida dos Doze Césares. Meu avô trazia mapas, anotações e livros coadjuvantes: não era bem uma leitura, já que ele sabia tudo de cor e selecionava o que e como contar à audiência infantil; era mais uma folia regida para nos ensinar a intimidade entre leitura-literatura, conhecimento e afeto; e a lição de que os homens – todos poeira passageira, sejam imperadores ou escravos – agem pelo caráter, no Império Romano ou em Olinda. Começava narrando assim “isso foi bem antes desse velho preto nascer, mas nem tanto”.

Foi bem antes de existirem os portais da minha vida – minha mãe nascida da minha vó portuguesa alvíssima que não conheci de olhos verdes cuja cor adivinho nas fotos em branco e preto e que era rica e foi deserdada pela família porque cismou de casar com o preto magro e pobre só para ele ser meu avô e me dar esse apelido que usa botas nesta coluna – que Suetônio descreveu o choro de Júlio César diante do túmulo de Alexandre, o Grande, pois já ultrapassara a idade de 32 anos que o macedônio tinha quando morreu dono do mundo, mas o general romano só obteria glória parecida por volta dos 50 anos.

O Brasil inteiro deveria prantear o fato de chegar ao século 21 com apenas 48,6% da população atendida por rede de esgoto. Além desse dado, o site https://www.tratabrasil.org.br informa que apenas 40% do esgoto coletado recebe tratamento. Isso não me escandaliza mais; no país onde o básico é luxo, o que me intriga é como, depois de apenas 516 anos do descobrimento, quase metade da população já desfrute desse item civilizatório e a indiferença ultrajante dos 48,6% se soma à indigna pasmaceira dos 51,4% para resultar naquilo que boia nas águas olímpicas do Rio de Janeiro ou nas dos rios, córregos, praias, lagoas e lagos das cidades brasileiras: nossa cidadania rarefeita.

A consciência indigente do brasileiro a respeito das obrigações dos governantes degenerou, sob o lulopetismo, na indigência consciente do populismo de um governo do atraso cujas políticas primitivas se restringem a cotas, bolsa-disso-e-daquilo e ao discurso inaugurando ódios na pregação embusteira de que ele, sim, faz tudo pelos pobres, enquanto lhes nega dignidade. Flores desse mal são, por exemplo, Matilde Ribeiro (ministra da Secretaria da Igualdade Racial de Dilma Rousseff ) e Cidinha Campos (PDT-RJ).

Quando a então ministra disse que não era preconceito “se um negro se insurgir contra um branco”, pois “quem foi açoitado a vida inteira não tinha obrigação de gostar de quem o açoitou”, enviei-lhe um email informando que, apesar de branco, meu pai jamais açoitara alguém; como filha de mãe mulata, gostaria que nenhum dos dois fosse atacado em virtude da cor; e um governo preocupado com a igualdade racial não determina os preconceitos justos, mas combate todos, conciliando a nação. Não tinha expectativa de resposta e Matilde, como boa petista de quem sempre espero o pior, não me decepcionou. Agora, Cidinha Campos se diz contra a violência doméstica, desde que a vítima seja “desvalida” e não tenha como “se socorrer”.

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Ela não está apenas afirmando que mulher rica tem a missão social de apanhar à vontade, nem apenas desprezando o fato de a violência não ser meio de resolver coisa nenhuma: também está pouco ligando para as mulheres pobres que apanham, pois enxerga nelas apenas a condição social como álibi ultrajante para ser a vice do intolerável Pedro Paulo, abstraindo o sofrimento concreto de mulheres reais. O limite da violência doméstica é o assassinato, mas a indecência dos políticos parece não ter limites.

Por esse critério, Sandra Gomide e Eliane de Grammond, por exemplo, tinham como se socorrer, então por que estão mortas? Ao costumeiro julgamento da vítima desses tipos de crime, será acrescentado agora o delito da riqueza; a garota carioca vítima de estupro coletivo foi acusada de ser branca e só por isso o caso teria repercutido; as feministas emudecem se são menores de idade os estupradores em casos de repercussão – será que algum dia desfrutaremos uma cidadania não seletiva e menos rala, que não preconize a porrada autorizada, o estupro merecido, o preconceito correto, a igualdade diferente perante a lei?

Essa inquietação é um dos principais nervos das manifestações pró-impeachment exposto na última delas, depois de Dilma nomear Lula ministro, colocando-o acima da lei a que todos devemos nos submeter. Compreendo que ele não queira ser preso, eu também não quero, por isso, ao contrário dele, não faço nada que enseje cadeia. O farsante recorrer à ONU como perseguido político, escarnecendo do país e da lei que lhe escancara todas as brechas exclusivas a quem, como ele, pode pagar (com que dinheiro?) para escancará-las, revela que Thomas Turbando continua o ato imundo na nossa cara e que é preciso voltarmos às ruas dia 31 exigindo o respeito que essa súcia miserável nos roubou antes de roubar nossa grana.

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Cresci em São Paulo e um sotaque leve que a memória afetiva faz remanescente não é o bastante para as pessoas perceberem que sou pernambucana, portanto é comum ouvir de algumas delas uma opinião detestável e estereotipada sobre os nordestinos. Como a maioria deles votou em Lula e Dilma, a coisa piorou. No começo, argumentava que paulistas elegeram Pitta e Haddad e deram inexplicável longevidade política a Paulo Maluf, o Rio Grande do Sul elegera Tarso Genro, etc. Mas cansei, agora corto o papo, revelo minha origem e digo que aqueles termos são ofensivos mesmo se ela fosse outra. A reação de surpresa é acompanhada de um ainda mais ofensivo “Ah, mas você é uma nordestina diferente”. Não sou: como qualquer brasileiro, desvalido ou não, vivo sob a mesma matéria que boia nas águas momentaneamente olímpicas do país.

Em 2011, algumas semanas antes de completar 103 anos, meu avô disse que, para uma poeira passageira, já tinha durado demais e estava cansado. Dias depois, pegou um atalho no cochilo depois do almoço e não acordou mais. Lá no topo da ladeira de onde se vê o sol desaparecer na fresta entre o horizonte e o mar.

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