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Valentina de Botas: O Brasil flerta com a morte

VALENTINA DE BOTAS Tenho duas notícias para o jeca, uma ruim e outra boa: a ruim é que, sim, o sórdido lulopetismo agigantou as mazelas brasileiras para se arrumar na vida e se perenizar no poder, mas a súcia se lambuzou tanto – como admitiu aquele compositor baiano de óperas vigaristas, o Jaques – que […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 23h43 - Publicado em 14 jan 2016, 14h21

VALENTINA DE BOTAS

Tenho duas notícias para o jeca, uma ruim e outra boa: a ruim é que, sim, o sórdido lulopetismo agigantou as mazelas brasileiras para se arrumar na vida e se perenizar no poder, mas a súcia se lambuzou tanto – como admitiu aquele compositor baiano de óperas vigaristas, o Jaques – que a única dúvida é se o jeca contemplará a própria extinção política solto ou na cadeia. A boa notícia é que finalmente o técnico veio fazer a conversão do meu fogão para gás encanado.

Lúcido sempre, J. R. Guzzo, mais do que relativizar o impeachment, lembra que o Brasil perambula entre a ausência de governo e a incorporeidade da oposição. Qual a alternativa para, digamos, a prefeitura de São Paulo? O Brasil decente saberá ganhar as eleições municipais? Perguntas objetivas que apontam para a angústia no centro da alma do país indignado: a nossa fome.

O Brasil tem fome de quê? De impeachment, mas não só. Com ou sem impeachment, continuaremos tomando três refeições diárias (quem pode), escovando os dentes, dormindo, ouvindo música e tal, e também tendo de ganhar outras batalhas na luta para fazer deste um país que preste.

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É nelas que as eleições municipais se inscrevem e que teriam de ser ganhas mesmo se o impeachment nem assunto fosse. OK, mas o meu, por favor, é com impeachment: aplicar a lei contra um governo ilegal mitigaria a fome de um país esbulhado apontando a importância da legalidade para uma nação minimamente viável.

Por quase uma semana, numa relação baseada nas promessas-desculpas dele e na minha cobrança indignada, eu e o técnico do fogão alcançamos uma espécie de familiaridade, estranhando-nos no país do compromisso cujas hora e data são só uma referência líquida. Apareceu com um jaleco aberto por cima de uma camiseta estampada com a foto do David Bowie e uma calça espacial de… técnicos de fogão fãs do Bowie.

Irresistível. Como detesto resistir ao irresistível, abrandei a manifestação da minha irritação pela demora: Ah, você também gosta do David Bowie? E mantive a naturalidade diante desse Brasil inverossímil e real na figura do técnico-astronauta de mármore no meio da minha cozinha e do auxiliar grave e gorduchoto que me obrigou a pensar no Sancho Pança, numa mistura camaleônica entre Cervantes e o gênio pop.

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Dancei, namorei, viajei ao som de Bowie, tendo na alma a fome que nos alimenta e que, se passar, nos mata antes da morte. O Brasil flerta com a morte deixando a súcia lambuzar-se na noite lulopetista inteira; pareceu ter perdido a fome de futuro, de realizar as potencialidades que traz na alma.

Onde a fome da alma dele? Nesta coluna e territórios contíguos, na multiplicação dos indignados, no cerco inelutável conquanto lento da realidade. Meu fogão ficou perfeito e vou preparar um jantar para os amigos mais chegados que terão de trazer a própria cadeira, o que não tem importância nenhuma quando a fome não é só de comida.

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