M é uma amiga querida que não consegue dizer “não” e eu quase não consigo dizer “não” a ela, só por isso aceitei encontrá-la com a P. Cheguei ao agradável bistrô antes delas, quase às 7 da noite com um restinho de luz natural se derramando sobre a vitória de um país que reafirma, do jeito dele meio sem saber como e tardio, o desejo de se refazer. Aproveitei para refazer as contas do mês e ver um jeito de acomodar o gasto com um secador novo de cabelos. Nada feito: o mês que costumava sobrar ao final do meu salário ficou ainda mais longo neste meu empreendimento como revisora frila. Não víamos P, colega de trabalho com quem tínhamos não mais do que a cordialidade que se deve ter com colegas de trabalho, há cinco anos, desde que se mudara para o Rio para lecionar na Federal de lá.
Veio visitar parentes fugindo da “distopia evangélica do Crivella”, mesmo “não entendendo como vocês escolheram um prefeito-empreendedorista-ostentação e rejeitaram quem poderia deter a direita emergente; ou melhor, entendo sim: São Paulo!”. Não é só São Paulo, disse M para a esquerdista inconsolável, tem mais umas 5.300 cidades. Claro, P é desagradável; julga-se superior moral, intelectual e espiritualmente. Apenas. Ou seja, desagradável. Sou cristã, M é ateia e P frequenta uma clínica (não é templo) de budismo em Ipanema, em cuja lojinha – uma lojinha espiritualizada, claro – comprou a linda pashmina. Outra pessoa talvez, mas não eu, desistiria de diversão certa e daquele vinho tão bom. Além disso, a coisa só melhorava: P estava incomodada com os olhares “opressores” de uns caras em outra mesa para nós.
Quando a voz de Gardel cantando Caminito abençoou o ambiente, falei a P sobre o meu secador. Começando a conversa, esclareci que se um dia vigorar o sonho dos pastores do ódio de gênero, disfarçado de feminismo, em que os homens olhariam para as mulheres sem ver nelas aquilo que fez Santo Agostinho, antes de ser um doutor da igreja, vendo uma bela mulher passar por ele, pedir “Senhor, fazei-me puro, fazei-me puro, fazei-me puro, mas não agora”, o mundo será mais sombrio e seremos uma espécie ainda mais tristonha no que temos de tristonhos.
O PT morreu de petismo; o esquerdismo, de esquerdismo. Certo jornalismo está desconsolado com a “guinada à direita”, a vitória dos conservadores, a ignorância política dos pobres, a intolerância religiosa e o “perigoso assédio da religião à laicidade do Estado”. Até parece que Crivella vai abolir o Carnaval e declarar o Estado Pentecostal da Cidade do Rio de Janeiro; Doria vai suspender a maior parada gay da América Latina; e Temer vai revogar a lei do divórcio no país e obrigar todas as mulheres a serem “belas, recatadas e do lar”. A direita e o liberalismo sadios se caracterizam justamente por não se meterem na vida privada do indivíduo, enquanto a esquerda tem nisso uma tara.
Essa esfera ideológica moderna ainda está em construção, mas nos livrarmos da esquerda degenerada que rouba da nossa grana à institucionalidade, passando pelos costumes privados, já é alguma coisa. Ressalvo essa história deletéria de “não político”, uma senha para franco-atiradores. Felizmente, Doria, ao lançar Geraldo Alckmin candidato a presidente no longínquo 2018, fez-se tão político como o padrinho.
Me parece que o país quer é tirar o atraso: atraso do sectarismo, do maniqueísmo, da estupidez de insistir em dividir o mundo entre esquerda e direita em que esta é inferior àquela em tudo, de arruinar o futuro em nome de um credo falido e da perversidade de pôr o Estado onde ele não cabe e amputá-lo de onde é obrigação ele existir: o Estado não precisa produzir petróleo, ser dono de banco, nem financiar artista consagrado – o Estado precisa combater 160 assassinatos diários num país selvagem sob um estatismo indomável acalentado por Vargas, celebrado nos governos militares anticapitalistas, timidamente combatido na era FHC e hipertrofiado além do gangsterismo sob os governos do PT com o credo autoritário esquerdista e a bizarra teoria econômica de distribuir riqueza sem saber produzi-la.
No país sincrético em que judeus frequentam o candomblé, católicas se casam grávidas e de branco, cristãos são comunistas e as relações institucionais entre o Estado e os cidadãos se baseiam em códigos laicos e não em parâmetros religiosos, a liberdade religiosa (e a de não ter religião) e a laicidade do Estado nunca correram perigo até a era da mediocridade inaugurar demônios em clivagens artificiais: nelas, além do odioso “nós x eles”, solidificou-se o preconceito contra os evangélicos porque sempre foram os mais refratários ao assédio esquerdista.
Edir Macedo lê a Bíblia como a súcia lê a Constituição; a interpretação que ele faz de “pessoa eleita por Deus” é vexaminosa, estreita e oportunista e, entre os evangélicos, foi quem mais se aproximou do regime finado. Pois bastou os dois credos – o secular e o dele – se enfrentarem no Rio, para que o vigor do preconceito contra evangélicos de tão pobres e pobres de tão evangélicos se explicitasse. Eis o socialismo à moda brasileira desvelando o coração trevoso das esquerdas onde se abriga uma contradição história que as condena a se impor pelo genocídio e pela mentira: o povo as rejeita.
A cara feia para os crentes veio acompanhada da censura ao empreendedorismo. Então, o professor brilhante da UNICAMP, o onipresente e chatinho Leandro Karnal, empreendedor de uma carreira bem-sucedida, condena, com a fúria do anti-niilismo de Nietzsche, o empreendedorismo. De Steve Jobs ou João Doria ao pobre coitado ambulante que vende água nos faróis sob o sol ou guarda-chuva nos faróis sob a chuva, ou uma revisora frila, somos todos ridículos. Compreendo. Também acho bacana pagar as contas falando de Shakespeare, mas os empreendedores são essenciais considerando que (1) a Unicamp somada a todo o restante empreendedorismo estatal brasileiro não conseguiria empregar toda a força de trabalho do país; (2) não se compram secadores de cabelos com uma digressão – em pleno Ponto Frio para um vendedor atônito – a respeito das angústias de Hamlet. E é somente na sociedade de mercado, por ser a única capaz de produzir riqueza e unir essa produção à liberdade (com suas tensões, pesos e contrapesos), que um pensador pode se sustentar com o próprio trabalho, ainda que pense esta sociedade de modo crítico.
Era um Parlux, um dos melhores secadores de cabelos, as eventuais leitoras deste texto devem saber. Já estava velhinho, o coitado, um presente que ganhei no dia dos namorados há 12 anos e, no fim de tarde deste domingo, ele queimou e mal terminei de dar uma ajeitada no cabelo antes de sair. Não sou uma adepta da escova progressiva, que chamo de regressiva. Muitas mulheres que aderiram a ela ficaram lindas, mas com cara de todo mundo, em feições sem personalidade. Prefiro continuar cultivando meus cachos com a ajuda do secador. Serenamente, expliquei tudo isso à P auxiliada por M, Gardel e pelo vinho. P agradeceu o encontro “interessante” e se despediu anunciando que as esperanças dela se chamavam Ana Júlia, a adolescente que invadiu uma escola no Paraná porque acha que democracia é o que ela acha que democracia é. Puxa vida, ela foi embora sem dizer nada sobre teu secador ter queimado, as esquerdas não conseguem mesmo compreender as necessidades da população, resumiu a querida M antes de brindarmos o fim do passado.