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Exposição mostra como ser feliz segundo Dona Canô

Casa cheia, alegria e coragem compõem a receita da mãe de Caetano e Bethânia; mostra traz objetos pessoais, depoimentos e áudio dela cantando com os filhos

Por Dagmar Serpa
Atualizado em 27 abr 2018, 16h53 - Publicado em 27 abr 2018, 06h00

O nome de registro e de batismo, Claudionor Viana Teles Velloso, pode não suscitar nada para a maioria. Mas basta falar em Dona Canô, como era mais conhecida, e provavelmente já vem à cabeça a imagem da simpática senhora que criou oito filhos, incluindo dois expoentes da MPB, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Foi com boa dose de luz própria, porém, que ela se transformou em personalidade das mais proeminentes da sua cidade natal, Santo Amaro, no interior da Bahia – e com frequência era notícia, ganhando projeção nacional.

A oportunidade de mergulhar um pouco nessa história é o que propõe uma exposição em sua homenagem que estará em cartaz na Caixa Cultural Salvador até 27 de maio. A mostra tem feito sucesso. Desde a inauguração, em 1º de março, até terça-feira, 24,  recebeu 7.287 visitantes – faltando um mês para seu encerramento, já ocupa o posto de vice-campeã em público do espaço. A recordista é Êxodos, do fotógrafo Sebastião Salgado, exibida ali em 2016.

Neste sábado, 28 de abril, há até a chance de fazer uma visita guiada por dois dos filhos de Dona Canô: a professora e escritora Mabel Velloso e Rodrigo Velloso, que já foi secretário municipal da Cultura de Santo Amaro.

O volume de público confirma a popularidade da mãe de Caetano e Bethânia. Seu aniversário, em 16 de setembro, costumava ser comemorado com uma festança que contava, em geral, com a presença não somente da grande família. Por ideia do filho Rodrigo, desde a 24ª comemoração de seu casamento de 53 anos com José Teles Velloso, o seu Zeca, a união, realizada em 7 de janeiro, passou a ser celebrada com um Terno de Reis, manifestação da cultura popular que homenageia os Reis Magos. A tradição familiar cresceu e apareceu tanto que acabou integrada ao calendário de festas de Santo Amaro.

Em datas especiais ou em dia normal, Dona Canô era capaz de levar visitantes de peso ao município do Recôncavo Baiano de menos de 62.000 habitantes. Peregrinavam por sua casa e seus eventos de globais, como a apresentadora Regina Casé, a políticos de lados opostos, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Antônio Carlos Magalhães (DEM), governador da Bahia por três vezes, ministro do governo José Sarney e, depois, senador.

Portas abertas

Dona Canô gostava de manter as portas sempre abertas, não só para personalidades, como também para anônimos. Mesmo após sua morte, em 2012, aos 105 anos de idade, as visitas aos domínios de Dona Canô nunca cessaram. Usava a rede de contatos em prol de sua Santo Amaro, buscando ajudas e melhorias para a cidade, como a reforma da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação. Com simplicidade, dizia que não entendia os motivos de ter tantos holofotes voltados para ela. “Eu queria saber por que é que fica essa agonia comigo”, chegou a afirmar.

Ser Feliz É para Quem Tem Coragem é o nome da exposição que, organizada com lógica afetiva, reproduz parte do universo de Dona Canô. Assinam a curadoria Ju Velloso Mesquita e Tania Fraccaroli, da Tom Tom Produções, e Elaine Hazin, da Via Press Comunicação. A mostra reúne fotos raras do acervo da família e um punhado de móveis e objetos pessoais, com destaque para uma coleção de terços e um altar de orações. A cenografia, de Ana Kalil, traz referências à fachada da casa 179 da Rua Amparo, seu badalado endereço, e da Igreja Matriz da cidade. Dá até para se sentar à mesa de refeições de Dona Canô e assistir a vídeos que, projetados em pratos brancos, trazem depoimentos de filhos, incluindo os de Caetano e Bethânia.

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No material exclusivamente produzido para a exposição, há também histórias contadas em vídeo por pessoas próximas, mas de fora da família. “É um sonho realizado”, diz Ju Velloso, 55 anos, não somente uma das curadoras mas a terceira a chegar à tropa de nove netos. Aqui, ela conta mais sobre a avó. Antes, para quem estranhou a letra “L” dobrada, ela explica que o sobrenome da família é escrito assim. Só Caetano e os filhos dele são Veloso, com um “L” só, por um erro de registro.

Quais lembranças você tem da relação de neta com Dona Canô?

Tive a sorte grande de ter uma avó avante do seu tempo. Ela não era a avozinha, e digo não pejorativamente, mas no sentido bom, dos paparicos. Na minha memória afetiva, ela era cuidadosa com todos da casa, mantendo um olhar atento para a alimentação e o gosto de cada um. Tinha um carinho grande por filhos e netos, mas de uma forma sempre muito forte. Não era uma mulher fraca em nada. Era decidida e raramente você a via reclamando. Tinha um senso de humor incrível, era espirituosa. E tenho na minha memória uma avó cheirosa.

Vocês conviveram bastante?

Tive também a sorte de conviver com uma avó até meus 50 anos. E ela era tão lúcida, politizada e sem nenhum preconceito de cor, de sexo, de nada. Sinto orgulho de ter sido bastante próxima dela. Morei metade da minha vida no Rio, mas a visitava muito. Ela tinha uma coisa bacana. Quando estava perto de você, ficava feliz, mas, na despedida, não ficava mal ou triste. Achava incrível essa liberdade. O maior marco da vida de minha avó é que sempre teve portas abertas para todo mundo, tanto para a família e os amigos quanto para quem fosse chegando.

Portas abertas até para gente que ela nem conhecia?

Era uma coisa tão louca que vinha ônibus de outras cidades fazendo turismo para conhecê-la. Até hoje, pessoas vão a Santo Amaro e visitam a casa dela. Meu tio Rodrigo recebe.

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Você fala em politizada. Em que sentido?

Era uma mulher forte, que batia na porta de governadores e prefeitos. Falava com o senador ACM. Pedia a Lula coisas para a cidade. Minha avó, na minha opinião, não tinha partido político. Seu partido sempre foi Santo Amaro. Fosse de que lado fosse, se ela pudesse alcançar, era para pedir por Santo Amaro. Em uma enchente, ia atrás de alimentos não perecíveis para quem tinha perdido tudo. Ela tinha uma alma absolutamente generosa. A coisa mais bonita que aprendi com minha avó foi a generosidade.

Você construiu uma conexão com ela desde bem pequena?

Há pouco tempo soube que, logo depois de minha mãe me ter, a casa de meus pais estava em obras ou algo assim e eu fui para a da minha avó. Então, meu quintal de infância começou ali. Foi um período curto. Mantivemos um contato direto. Minha memória da casa dela é de mesa farta, com doces e compotas. Havia muita doçura ali. Nunca vi minha avó gritando ou brigando com filho. Nunca teve grosseria. Nunca ninguém viu meu avô e minha avó discutindo na vida. Olha que era muita gente para ver.

Por isso tudo a senhora quis montar uma exposição em homenagem a ela?

A ideia começou em 2015. Mas o projeto só foi aprovado neste ano, o que trouxe uma alegria grande, até por ser surpresa para mim. Juro que já não pensava mais muito nele. Fiquei emocionada e fui levar isso tudo para minha família. Aí fui falando com minha mãe, com tio Rodrigo, com Bethânia… Ela ficou muito feliz. Caetano também. Todos ficaram e colaboraram. Caetano falou: “Bota minha mãe cantando, tem gravação comigo e Bethânia”. Colocamos logo na primeira sala. Para mim, é um sonho realizado. E torço para que a exposição tenha vida longa e viaje. Quero que o Brasil inteiro consiga ver. Há muitos pedidos. É inacreditável.

O nome da exposição, Ser Feliz É para Quem Tem Coragem, conforme divulgado, é uma frase de Dona Canô. Curiosamente, no livro Um Sopro de Vida, a escritora Clarice Lispector diz em um diálogo: “Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem”. Como explica pensamentos tão parecidos?

É uma frase dela. Minha avó, na verdade, adorava ler. Era interessada em tudo, mas não leu Clarice. Essa é uma coincidência de mulheres completamente diferentes. Uma morando no Rio de Janeiro, outra nascida no interior da Bahia, no Recôncavo. O que eu sentia é que minha avó era uma pessoa de palavras positivas. Tem uma que uso bastante. Sempre procuro tirar um pouco da agonia, do corre-corre, do mau humor, todas essas coisas que às vezes cercam a gente, para poder dizer que a vida é formidável. Porque minha avó falava muito isso. Eu gostava de brincar com ela e até a chamava de maluca. Perguntava: “Minha avó, como vai você, maluca? Dizia que tudo ia bem. E eu: “Como está a vida?” Ela sempre respondia: “Formidável”. Nunca estava um porre, chata ou ruim. Tudo dela era pontuado pela alegria. Tinha um grande amor pela existência. Com mais de 100 anos de idade, dizia em despedidas: “Estou esperando você no ano que vem”. Não é incrível?

Então, tinha coragem de sobra para ser feliz?

Tinha mesmo. Aproveitava tudo dos filhos e dos netos, tudo que a vida podia dar. Adorava roupa nova, casa cheia, joias. Estava sempre toda combinada, linda, com seu vestido branco, para carregar Nossa Senhora em 2 de fevereiro (dia da festa da cidade em homenagem à Nossa Senhora da Purificação). A maior importância para a vida da minha avó era Santo Amaro e essa festa. Era uma alegria ver Nossa Senhora ser carregada.

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Dona Canô era católica, embora na exposição tenha o depoimento de um pai de santo?

Era católica. Foi batizada, comungou, casou na igreja. Tinha muita fé em Nossa Senhora. Mas tinha essa coisa do amor a todas as religiões. Viu um pai de santo de lá levando uma iaô (iniciada) e achou a coisa mais linda. Eu, na verdade, fiz obrigação (ritual do candomblé). Quando decidi, cheguei e contei a ela: “Vou fazer santo (a iniciação)”. Minha avó respondeu: “Que maravilha, se é o que você acredita, faça mesmo”. Ela achava que cada um podia mandar no próprio destino, e acho que essa é a forma mais linda de respeitar o ser humano.

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