Em dez anos, mortes por ações policiais cresceram quase 200% no país
Só no ano passado mais de 6 mil pessoas foram mortas em decorrência de ações policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024
As cenas de pânico e horror vistas na Avenida Brasil, principal via expressa do Rio de Janeiro, após ação policial realizada no Complexo de Israel, na zona norte da cidade, na semana passada, chamaram a atenção do país para uma tragédia que vem acontecendo diariamente, longe dos olhos da classe média, especialmente nas periferias e comunidades populares: as mortes decorrentes de intervenções policiais.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, publicado em meados de julho deste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as mortes decorrentes de intervenções policiais seguem elevadas no país e em vários municípios brasileiros representam mais da metade das mortes violentas intencionais.
Apesar de reiteradas condenações internacionais em casos de violência policial, o “Brasil pouco avançou na implementação das medidas ou na responsabilização de agentes estatais envolvidos em ações letais”, frisa o relatório.
“O tiroteio que ocorreu na Avenida Brasil, o terror das pessoas que circulavam nas imediações, e a morte de três pessoas, além de outras três feridas, mostram a falência do Estado em proteger a população”, reforça César Muñoz, diretor da Human Rights Watch no Brasil, em entrevista à coluna.
Segundo ele, “os grupos criminosos, as milícias e o tráfico avançam no Rio de Janeiro e praticamente a única resposta do Estado tem sido operações policiais, frequentemente letais, que colocam moradores e os próprios policiais em perigo, e que são seguidas de investigações inadequadas sobre as circunstâncias das mortes”. “Após as operações nada muda. Até os próprios policiais sabem que é como enxugar gelo”, destaca.
Em números absolutos, o Rio de Janeiro registrou o segundo maior número de vítimas, em 2023: 871 mortos em intervenções policiais. Em primeiro lugar, aparece a Bahia com 1.699 mortos em intervenções das duas polícias e, em terceiro lugar, o Pará, com 525 mortes.
Desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador de mortes decorrentes de intervenções policiais, o crescimento do número de pessoas mortas no país foi de 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas no ano passado.
PERFIL DAS VÍTIMAS
A partir da análise dos microdados dos boletins de ocorrência, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública traçou o perfil das vítimas da letalidade policial no Brasil em 2023. Segundo o relatório, a quase totalidade é de homens (99,3% dos casos).
No que se refere à idade, 71,7% das vítimas são adolescentes e jovens, percentual mais elevado do que entre as vítimas de homicídios, em que 47,4% tinham até 29 anos.
Além dos marcadores de gênero e idade, o relatório aponta ainda que raça/cor se mostrou um fator determinante nas diferenças de mortalidade por intervenções policiais no ano passado. As taxas de mortalidade de pessoas negras em intervenções policiais é 289% superior à taxa verificada entre pessoas brancas. Em relação à proporção, 82,7% das vítimas eram negras, 17% brancas, 0,2% indígena e 0,1% amarela.
Não é a primeira vez que escrevo sobre isso na coluna. Em fevereiro deste ano, publiquei uma avaliação sobre avanços e retrocessos na área de direitos humanos no país, em 2023. Um dos pontos mais críticos apontados, na época, pelo próprio Human Rights Watch foi a segurança pública.
“É URGENTE QUE O GOVERNO FEDERAL LIDERE UMA ESTRATÉGIA NACIONAL DE REDUÇÃO DA LETALIDADE POLICIAL”
Decorrido quase um ano, o cenário não mudou. A cobrança também não. “O Brasil precisa de uma política de segurança pública eficiente e que respeite os direitos humanos, focada em desmantelar redes criminosas com inteligência, investigando de forma aprofundada a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas e a corrupção, inclusive na própria polícia”, avalia César Muñoz.
Para o especialista, é urgente que o governo federal lidere uma estratégia nacional de redução da letalidade policial, envolvendo autoridades estaduais e o Ministério Público. Além disso, é necessário garantir a autonomia e a qualidade das perícias. “O Ministério Público precisa fortalecer o controle externo da atividade policial, inclusive as operações, e liderar as investigações de casos de mortes causadas pela polícia e outras suspeitas de abusos policiais”, defende o diretor da Human Rights Watch no Brasil. “Deve-se também melhorar o treinamento e o apoio psicológico aos policiais, ampliar o uso de câmeras corporais e reformar os códigos disciplinares”, enumera.
O episódio da Avenida Brasil nos mostrou que não dá para esperar mais. A inação do Estado na segurança pública tem custado a vida de milhares de pessoas, a maioria jovens, e provocado tragédias todos os dias.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.