Quase 500 mil alunos estudam em escolas sem banheiro no Brasil
Dados do Censo Escolar 2024 revelam uma realidade dramática que atinge quase 5 mil escolas do país

Há alguns anos, coordenei a edição de uma publicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) intitulada Fora da Escola Não Pode! O desafio da exclusão escolar. O livro todo foi ilustrado por crianças e adolescentes que participaram de oficinas em diferentes regiões do país para desenhar a escola em que gostariam de estudar. Na época, lembro que fiquei impressionada com a quantidade de crianças que, em vez de quadras e computadores, desenhavam banheiros dentro da escola dos seus sonhos.
Dados do Censo Escolar 2024 mostram que banheiro na escola ainda hoje é um desejo distante para cerca de 1% dos alunos do país. Parece pouco, mas o percentual equivale a 458.774 estudantes, uma população maior do que a de municípios como Santos (429.567 habitantes) ou Piracicaba (438.827), em São Paulo. Outras 5.765 escolas não têm esgotamento sanitário, 6.658 não têm água potável e 2.532 não têm abastecimento de água.
“Não são só os alunos que sofrem com esse problema. Os profissionais de educação também não têm água, banheiro, condições de trabalho”, lembra Cezar Miola, vice-presidente de Relações Político-Institucionais da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), em entrevista à coluna.
MINISTÉRIO PÚBLICO E TRIBUNAIS DE CONTAS JUNTOS POR ÁGUA E BANHEIRO NAS ESCOLAS
Em maio de 2022, inconformados com os problemas de saneamento identificados no Censo Escolar de 2021, em Alagoas, o Ministério Público de Alagoas, a Atricon e o Instituto Rui Barbosa fizeram um acordo de cooperação. A partir daí, iniciou-se um movimento junto a todos os Tribunais de Contas e Ministérios Públicos do país pela melhoria do saneamento nas escolas.
Movimento que deu origem ao Projeto Sede de Aprender Nacional, que conta hoje com a parceria do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Neste mês, a iniciativa obteve o primeiro lugar no Prêmio CNMP na categoria Fortalecimento da Atuação Integrada na Proteção dos Direitos da Primeira Infância.
Em junho deste ano, numa ação conjunta – e inédita – Ministérios Públicos e Tribunais de Contas visitaram mais de 2 mil escolas. A partir de uma matriz de risco, unidades de ensino que apresentassem deficiência em pelo menos uma das áreas (abastecimento de água, acesso à água potável, existência de esgoto e de banheiro) foram selecionadas para fiscalização local. As informações obtidas nas inspeções foram registradas pelos auditores dos Tribunais de Contas e promotores, consolidadas e publicadas pelo CNMP.
Nas inspeções, auditores dos Tribunais de Contas e membros dos Ministérios Públicos encontraram de tudo: banheiros sem portas, escolas sem banheiro, escolas que não dispõem de coleta de esgoto ou água potável, banheiros sem água ou com pias e bebedouros muito altos, que as crianças da educação infantil não alcançam.
Em 15% dos banheiros vistoriados havia falta de água, mais da metade dos estabelecimentos (54%) não dispunha de coleta de esgoto, 74% não possuíam certificado de potabilidade da água, 17% não tinham água potável e 6,8% não tinham banheiro. Numa escola indígena visitada, em Sandolândia, na entrada da Ilha do Bananal, divisa dos estados de Tocantins e Mato Grosso, a água tinha uma coloração escura e odor forte, impossível de ser consumida.
Um dos primeiros resultados das inspeções, segundo Cezar Miola, responsável pelo Sede de Aprender na Atricon, foi a identificação de falsos positivos, especialmente no que diz respeito à ausência de água. A descoberta do problema deve ajudar na melhora desse dado no próximo Censo.
“Muitas vezes, o diretor da escola entendia que uma escola sem encanamento, por exemplo, era uma escola sem abastecimento de água, o que não é verdade”, explica Miola. “No caso de Alagoas, também houve uma melhora efetiva pela ação concreta adotada”, diz ele.
Um dos exemplos de ação concreta é a busca de recursos por meio de programas como o PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola), para atender a essas necessidades. “Eu me lembro de vários casos em que havia pendências em prestação de contas no âmbito do PDDE e, às vezes, eram questões simples, de natureza burocrática que estavam travando os processos”, conta Miola.
O fato de os Tribunais de Contas passarem a registrar isso nas suas auditorias iniciou, segundo ele, um processo de melhoria. “Esperamos que no próximo Censo Escolar os dados sejam mais positivos”, diz ele.
ORIENTAÇÃO E BUSCA DE SOLUÇÕES CONSENSUAIS PARA RESOLVER O PROBLEMA
Além de orientar, por meio de treinamentos, sobre como resolver essas questões burocráticas e acessar os recursos, os Tribunais de Contas e os Ministérios Públicos estaduais também têm buscado as chamadas soluções consensuais, celebrando termos de ajustamento de conduta (TAC), no caso do Ministério Público, ou de gestão, no caso dos Tribunais de Contas. Por essas determinações, os gestores públicos se comprometem a resolver a situação num determinado espaço de tempo.
“Muitas vezes, o problema se repete por anos seguidos. Há troca de gestor e nada acontece. O que nós queremos, com essas ações, é que as escolas tenham banheiro, que a água esteja lá e que o lixo seja tratado. Muitas determinações têm sido expedidas nesse sentido”, afirma Miola. Não há, no entanto, estatísticas. “Existe um trabalho de orientação, mas também de indução de fiscalização e de cobrança de providências”, diz.
Para dar visibilidade ao problema e facilitar o controle social, o projeto Sede de Aprender também lançou um painel BI, que consolida os dados disponibilizados pelo Censo Escolar 2024. São, inclusive, do painel os dados utilizados pela coluna. As informações podem ser acessadas com a utilização de diversos filtros, permitindo a pesquisa, por exemplo, por município, estado e estabelecimento de ensino.
Não podemos tratar esses dados com normalidade. Não é aceitável ter escolas sem banheiro ou sem água potável. O retrato traçado pelo Censo Escolar 2024, disponibilizado pelo painel, é muito grave e urgente.
“É preciso colocar esse assunto na pauta do país. Temos que garantir condições mínimas para que o aprendizado e o desenvolvimento das crianças ocorram com dignidade”, resume Cezar Miola. A iniciativa do Ministério Público e dos Tribunais de Contas é um passo importante nesse sentido. Outros passos, no entanto, vão precisar ser dados, por diferentes atores. E logo.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.